Mudança no marco legal do saneamento traz instabilidade, diz executiva

Segundo Luana Pretto, do Instituto Trata Brasil, acabar com limite de 25% para PPPs é positivo, mas mudar regras pode afugentar investidores

atualizado 16/04/2023 10:17

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Divulgação/Instituto Trata Brasil

Aprovado pelo Congresso Nacional em junho de 2020 e sancionado pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL) cerca de um mês depois, o marco legal do saneamento básico está prestes a completar três anos. A legislação definiu metas de atendimento de 99% da população brasileira com água potável e 90% com coleta e tratamento de esgoto até 2033.

No dia 5 de abril, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou dois decretos que alteraram alguns pontos da lei e geraram preocupação em entidades do setor, que temem uma possível retração de investimentos diante de eventual insegurança jurídica.

Uma das principais alterações feitas pelo governo é a suspensão do limite de 25% para as parcerias público-privadas (PPPs) em concessões de saneamento. Lula também prorrogou até dezembro de 2025 o prazo (que havia expirado em 2021) para que as empresas estatais comprovem que têm capacidade financeira para fazer investimentos no setor. Os critérios para essa comprovação também foram flexibilizados.

Os decretos assinados no início do mês permitem ainda que as companhias estaduais prestem serviços, sem necessidade de licitação, em microrregiões, regiões metropolitanas ou aglomerações urbanas. O prazo para a regionalização do serviço de saneamento determinado pelo marco legal também foi prorrogado para 2025.

“Isso pode trazer uma insegurança jurídica em relação a novos investimentos”, afirma a presidente-executiva do Instituto Trata Brasil, Luana Pretto. A entidade é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) que reúne empresas do setor e desenvolve projetos voltados ao saneamento básico em comunidades vulneráveis.

“A partir do momento em que uma empresa decide entrar no setor de saneamento básico, ela quer regras claras e objetivas que precisam ser seguidas. Quando essas regras mudam no decorrer do caminho, isso gera uma instabilidade e muitas vezes até um pé no freio dos investimentos, tanto no caso de empresas públicas quanto privadas”, alerta Luana, em entrevista ao Metrópoles.

Para ela, “uma mudança no início da execução de uma lei é sempre ruim porque traz instabilidade”. “Qualquer mudança no meio do caminho pode prejudicar o andamento desses investimentos. Agora, o fato é que já temos essas mudanças concretizadas. Diante disso, devemos tentar ver a melhor forma de conduzir os serviços para que a população não seja prejudicada”, observa.

Leia os principais trechos da entrevista concedida por Luana Pretto ao Metrópoles:

Qual é a sua avaliação sobre os decretos assinados pelo presidente Lula, que alteraram o marco do saneamento?

Tem um ponto positivo, que é a retirada da trava dos 25% dos contratos para a realização de PPPs. Isso, de certa forma, é bom porque, para atingir a universalização até 2033, os prefeitos e governadores terão de buscar uma solução para dar celeridade às obras e cumprir as metas. Uma das opções para ganhar essa celeridade pode ser a realização de PPPs em parte dos serviços. Muitas vezes o prefeito ou o governador podem não querer fazer uma concessão total ou parcial por entender que não haverá a celeridade necessária apenas com a empresa pública existente. A retirada dessa trava é positiva nesse sentido. Em relação a outros pontos, nós olhamos com atenção a postergação dos prazos para a comprovação da capacidade econômico-financeira e da regionalização. Além da postergação dos prazos, tivemos uma mudança de critérios para essa comprovação de capacidade econômica. Em 2021, tivemos uma fotografia das companhias estaduais que não conseguiram comprovar sua capacidade financeira para 1.100 municípios aos quais elas prestaram serviços. Com isso, esses municípios se tornaram irregulares e agora, com os novos critérios de comprovação, é bem provável que fiquem regularizados. A grande questão é se haverá, efetivamente, um aumento no volume de investimentos por parte das companhias estaduais nesses municípios. É preciso acompanhar isso de perto e ver se haverá o investimento necessário, para que não cheguemos a 2033 sem ter cumprido as metas do marco legal.

Quais são os maiores riscos ao cumprimento das metas?

Tem um ponto importante que é a continuidade dos serviços com contratos precários. Esses 1.100 municípios muitas vezes estão sem contrato vigente ou com contratos vencidos. O marco legal previa que, quando o contrato chegasse ao fim, era preciso realizar uma nova licitação do serviço. Essa medida buscava garantir maior competição e eficiência. Com a queda dessa premissa do marco legal, temos de acompanhar de perto para entender se os investimentos vão aumentar, de fato. Necessitamos de uma inflexão na busca por modelos de gestão que acelerem os investimentos mesmo com a prorrogação desses contratos.

Uma das mudanças que mais preocupam o setor é a permissão para que empresas estatais de saneamento prestem serviço em regiões metropolitanas sem licitação. O que a senhora achou dessa medida?

Isso pode trazer insegurança jurídica. Podemos ter menos entrantes no setor de saneamento por causa dessa insegurança jurídica gerada. A partir do momento em que uma empresa decide entrar no setor de saneamento básico, ela quer regras claras e objetivas que precisam ser seguidas. Quando essas regras mudam no decorrer do caminho, isso gera uma instabilidade e muitas vezes até um pé no freio dos investimentos, tanto no caso de empresas públicas quanto privadas. As empresas se perguntam se podem continuar investindo após os decretos ou se daqui a pouco haverá uma nova decisão jurídica contrária. Gera uma instabilidade e, no fim das contas, é ruim para a própria população. Independentemente de o investimento ser público ou privado, o objetivo é que as pessoas tenham acesso à água e à coleta e tratamento de esgoto.

Ao assumir a presidência do Instituto Trata Brasil, em 2022, a senhora disse que mudanças importantes já estavam em curso no país graças ao marco do saneamento. Em que medida os novos decretos colocam em risco esses avanços?

Uma mudança no início da execução de uma lei é sempre ruim porque traz instabilidade. É sempre melhor que se espere um período maior de consolidação, ainda mais no setor de saneamento, que tem um ciclo de vida mais longo. Até ter o licenciamento ambiental, até realizar as obras de engenharia, é um ciclo de médio a longo prazo. Qualquer mudança no meio do caminho pode prejudicar o andamento desses investimentos. Agora, o fato é que já temos essas mudanças concretizadas. Diante disso, devemos tentar ver a melhor forma de conduzir os serviços para que a população não seja prejudicada.

Atualmente, o Brasil tem cerca de 100 milhões de habitantes sem coleta de esgoto e 35 milhões sem acesso à água tratada. Como explicar esses números em um país que está entre as 12 maiores economias do mundo?

Historicamente, o Brasil não viu o saneamento básico como uma prioridade. Convivemos muito tempo com aquele velho entendimento de que obra enterrada não dá voto. O saneamento sempre foi o patinho feio da infraestrutura. Isso gerou passivos muito grandes. As cidades se desenvolveram, tiveram suas ruas asfaltadas, suas infraestruturas avançando, sem que o saneamento acompanhasse. Temos um déficit de desenvolvimento econômico e social da população que não tem acesso a esse serviço, o que é inaceitável. Não ter o saneamento como uma política pública prioritária é um grande erro que se cometeu ao longo dos últimos 40, 50, 100 anos… Agora começamos a ter uma conscientização um pouco maior sobre a importância do saneamento, que pode trazer pontos positivos para a educação, a geração de renda, o turismo ou a valorização imobiliária. O saneamento é uma questão estruturante que pode ser a base para o desenvolvimento da sociedade e da economia.

É possível cumprir as metas estipuladas no marco legal do saneamento em 10 anos?

Depende da região do país. Na região Sudeste, por exemplo, os investimentos são bastante altos e os indicadores estão muito próximos da universalização. Por outro lado, na região Norte, vemos alguns estados evoluindo e outros que continuam com o mesmo modelo antigo de gestão, sem priorizar o saneamento básico e sem investimento suficiente. Eu diria que é factível cumprir as metas desde que essas regiões nas quais ainda há baixo investimento mudem a sua visão em relação ao saneamento e deem maior atenção a esse tema, para que haja uma real melhora na qualidade de vida das pessoas que ali residem.

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