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Olhemos para Argentina, companheiros (por Cristovam Buarque)

O eleitor quis sair de onde está, escolheu ficar contra o passado velho, não necessariamente para construir um futuro novo

atualizado 25/11/2023 1:06

Imagem colorida de Javier Milei em comemoração - Metrópoles Reprodução/Redes Sociais

Quando é empurrado por anos à beira do abismo, o eleitor opta por passo adiante. O cansaço com o passado é maior do que o risco com o futuro incerto sem esperança. É o que aparentemente aconteceu na Argentina nesse domingo, 19 de novembro. Depois de décadas de estagnação econômica, inflação monetária, desigualdade social, pobreza generalizada, retrocesso civilizatório, percepção de corrupção por sucessivos governos, os eleitores preferiram votar em um candidato com propostas inconsistentes, temerárias, arriscadas, mas acenando por mudança. Não confiam que ele trará um tempo novo, mas espera que provoquem ruptura com o velho.

O eleitor quis sair de onde está, escolheu ficar contra o passado velho, não necessariamente para construir um futuro novo. Votaram os desesperados com a realidade, os descontentes com todos os outros políticos, os que de tanto cansaço com a beira do abismo acham que não há outra alternativa além de jogar-se e tentar depois se recuperar do desastre que, por pior que seja, será diferente do passado e do presente, votaram também os que têm esperança de que o eleito utilize paraquedas que minimize o impacto da queda. O eleitor argentino fugiu da irresponsabilidade no presente e da falta de esperança para um novo tempo.

Devemos olhar para a Argentina para evitar dois graves erros: a irresponsabilidade no presente e a falta de esperança para o futuro. A Argentina é uma lição para aqueles que, no Brasil, acham que o medo do abismo é suficiente para barrar a eleição dos que parecem loucos e eleger aos que parecem lúcidos, mas sem credibilidade. A memória é curta e esquecemos que em 2018 fomos a Argentina de hoje; e que, em 2022, por pouco não continuamos na queda.

No que se refere à responsabilidade, o governo Lula tem no Ministério da Fazenda uma voz que passa confiança, mas percebe-se que não tem o respaldo total de seu partido, o próprio Presidente da República dá sinais contraditórios sobre a necessidade de responsabilidade fiscal; o afrouxamento de certas regras para nomeação de dirigentes acenam ao risco da volta do aparelhamento da máquina do Estado e consequente corrupção.

No que se refere à esperança, os progressistas brasileiros precisam olhar para a Argentina sem arrogância e perceberem que apesar de estarmos melhores que eles, não estamos acenando para o futuro. Temos um amplo programa de assistência social com transferência de renda mínima, mas não propomos em quanto tempo os brasileiros não precisarão mais de auxílio estatal para a sobrevivência. Voltamos a ter taxas de crescimento, mas não oferecemos esperança de uma economia dinâmica compatível com o equilíbrio ecológico e com a evolução tecnológica, inclusive com a inteligência artificial. Não damos esperança de como garantir emprego, em uma época de robotização; nem como equilibrar a Previdência Social, em tempo de esgotamento do Estado e de envelhecimento da população. Não acenamos para um país sem corrupção, sem violência, desemprego, sem pobreza, nem desigualdade; mesmo os governos de esquerda não apontam para a distribuição de renda, nem para garantir filhos dos pobres em escolas tão boas quanto os filhos dos ricos. Estamos consertando desastres herdados do passado, mas não estamos acenando com esperanças para o futuro. Não estamos oferecendo esperanças, apenas conformidade assistencial no mesmo velho sistema que na Argentina levou o eleitor a preferir Javier Milei.

Nossas ideias estão tão caducas quanto as dos peronistas na Argentina: continuamos confundindo sindicatos com povo, interesse público com Estado, economia nacional com realidade global, desperdícios inflacionários com investimentos produtivos, assistência com revolução, justiça com impunidade, partido com país, presente com construção de futuro, a realidade digital e robotizada com o tempo analógico e mecânico. Ficamos para trás, empurrando o povo na direção do abismo, sem nos preocupar com a paciência do eleitor que por descontentamento decide dar um passo adiante apesar das prováveis consequências. No momento em que o Brasil exige reformas, os progressistas ficam conservadores e defensores do status quo. É a direita que propõe reformas anti-povo, mas reformas que seduzem um eleitorado descontente com a realidade e sem ver esperança em nossos discursos. A Argentina mostrou que preferem um louco direitista com novidade a um progressista lúcido nostálgico do passado e se locupletando de privilégios no presente.

Olhemos para a Argentina, sabendo que mileis estão se preparando para convencer o eleitor brasileiro de que pular no abismo é melhor do que ficar sendo empurrado em sua beirada.

 

Cristovam Buarque foi governador, ministro e senador 

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