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O que espalha medo no Brasil é o Direito 4.0 (Por Lenio Streck)

Esse que persegue seletivamente

atualizado 01/06/2023 1:26

Balança símbolo da Justiça Rafaela Felicciano/Metrópoles

O leitor do Metrópoles pode achar estranho o título falando em direito 4.0 e a alusão ao medo. Explico. O professor Joaquim Falcão escreveu artigo aqui sob o título A imprevisibilidade judicial espalha medo no país. Tentarei contestar, com todo o espírito acadêmico.

No texto, Falcão faz críticas à “auto desorganização do sistema judicial” (sic) do Brasil, representada por alguns exemplos como a declaração do min. Dias Toffoli sobre a condenação de Genuíno e a extinção do mandato do deputado Dallagnol fundada em “pretensas intenções no lugar de fatos concretos”, tudo porque no Brasil vigora “a prática da elasticidade dos conceitos jurídicos criados como alicerces democráticos, dando como exemplo o conceito de discricionariedade”. Diz, ainda, que “a desorganização do Poder Judiciário, onde não se sabe quem manda em quem, e quando, e por quanto tempo, é importante componente do custo Brasil”, e isso afasta os investidores.

Sem dizer o que o professor entende efetivamente como previsibilidade, parece que, antes da se preocupar com a discricionariedade, o que deseja, mesmo, é que, em suas palavras, “a médio e longo prazo, menos importa se tribunais estejam decidindo certo ou errado. Importa mais o processo decisório, o direito processual, é previsível. Não está sendo”. Isto é: um modelo não cognitivista moral para a decisão judicial. Soa estranho isso para um defensor do cognitivismo moral como eu – defensor de rígidos critérios decisivos que apontem para a correção de decisões. Em síntese: teoria da decisão.

A pergunta inicial é: previsibilidade se confunde com pressa? Ser expedito é ser eficiente? Algo como “decida-se, para o bem e para o mal”? Ora, o maior problema está na discricionariedade – e nisso concordamos. Depende o que seja isto, é claro.

Porém, colocar a soma de todos os medos em “uma auto desorganização” soa muito estranho e, o que é mais grave, propor uma espécie de “direito processual de velocidade”, do tipo “menos importa se decidem certo ou errado; importa é que decidam”. Trata-se de uma espécie de análise econômica do processo.

Na verdade, isso não surpreende, uma vez que, não faz muito, o professor Falcão, em defesa da Operação Lava Jato, escreveu artigo intitulado “Uma nova geração de magistrados pede passagem: Desempenho impecável e encantador”. O artigo era uma ode ao TRF4, cujas decisões foram anuladas depois pelo STF.

Sobre esse artigo, escrevi, juntamente com Marcelo Cattoni e Martonio Barreto Lima, uma espécie de resposta, intitulada “O que é isto ‘o novo pede passagem’ do TRF 4 e Joaquim Falcão”? que faz parte do livro Comentários A Um Acordão Anunciado – O processo Lula no TRF4 (SP, ed. Outras Expressões, 2018).

Veja-se que, nesse artigo com o sugestivo nome de “Uma Nova Geração de magistrados pede passagem”, o professor Falcão diz que o TRF4 apresentou ao Brasil uma nova maneira de pensar, expressar e construir a justiça”.

Pergunta-se: o novo que “pede passagem” para o professor Falcão é entender como perfeitamente legítimo, no processo Lula, dizer que “a prova da propriedade está no comportamento registrado. E não no papel, na escritura A ou B. Simples assim”, como constou no seu artigo de então? Será esse o “novo” que pede passagem?

Não, caro mestre, não: a lei não entende assim. E a Constituição diz exatamente o contrário do que professor Falcão celebra nos novos magistrados: esta Constituição não permite ao magistrado – nem a ninguém – ir além do que o Poder Constituinte disse. Não há como se transformar a formalidade exigida pela lei em informalidade transmitida por juízes. Novamente por uma singela razão: a Constituição não nos permite esta informalidade, ainda mais para privar alguém de sua liberdade de ir e vir.

Até concordo com o professor quando critica a discricionariedade (na verdade, ele critica a falta de limites na discricionariedade, mas não ela mesma) – que combato há tanto tempo. Defender um direito de velocidade do tipo “decidir mesmo que errado, desde que rápido” é apostar em uma falta de limites, como bem denuncia Bernd Rüthers em seu Die unbegrenzte Auslegung (uma Interpretação Ilimitada). Se é a isso que Falcão se refere, estamos juntos. Mas jamais a um direito 4.0 ou algo assim. Importa, sim, o modo como se decide. Decisões corretas devem ser buscadas. Não é qualquer decisão que importa. Imaginemos isso aplicado à medicina. Ou à engenharia. Ou à psicanálise. Enfim…

Portanto, discordo, com todo respeito acadêmico, quando o professor Joaquim Falcão diz que o que importa é que se decida, mesmo que errado. Ora, o discricionarismo (para mim, qualquer tipo de discricionarismo) é amigo direto da decisão errada, mormente quando rápida. Expedita.

Mais ainda, se o professor Falcão repudia a discricionariedade (sem limites) – e sua crítica é bem forte – então de que modo elogiou a Operação Lava Jato e as decisões do TRF4, as quais, sem dúvida, tinham no voluntarismo (que é uma forma de discricionariedade ilimitada) o seu maior combustível – tanto é que o Supremo Tribunal procedeu a devida correção?

Por fim, usando o professor contra ele mesmo, vejamos esta frase: “Coincidência ou não, o poder de pauta dos tribunais, conceito garantidor de sua independência, foi elasticamente usado agora no caso de Deltan Dallagnol”. Ora, se o professor sustenta que é bom “decidir mesmo que errado e sendo rápido é o que importa”, por qual razão se pode criticar, usando essa metodologia, a decisão que extinguiu o mandato do deputado? Sim, sei o que o professor quis criticar. Mas defender eficiência a partir de um direito veloz sem se importar com os resultados dessa decisão não me parece coerente com a busca de um sistema jurídico condizente com o Estado Democrático de Direito – que, ao que sei, sempre foi o objetivo do professor.

Não creio que haja “servidão voluntária” de tribunais no Brasil, como insinua ao final do artigo. Penso que a tese do menino prodígio de apenas 18 anos (La Boétie), escrita lá no longínquo século XVI, tinha como endereço outra coisa. Se fossemos aplicar ao judiciário brasileiro, a “tese” da “servidão voluntária” lamentavelmente se aplicaria à comunidade jurídica. Essa mesma que permitiu que uma Operação como a Lava Jato encantasse corações e mentes. E que quase destruiu a democracia brasileira.

 

Lenio Streck, jurista, professor e advogado

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