Vi um polvo num documentário e deixei de ver o polvo: estava a olhar para a minha juventude.
É-se um polvo quando se é novo, com braços a mais e pernas a mais, agarrando tudo o que passa. Com este tentáculo bato uma crónica, com outro um poema, com um terceiro uma punheta, com o quarto agarro-me a outro polvo e proponho-lhe irmos apanhar uma bebedeira.
Com o quinto, cativo uma sardinha, com o sexto pinto o retrato da amada, com o sétimo levo as ventosas à cabeça e proclamo que a vida é uma canseira e que a tinta dá-nos cabo dos olhos e, finalmente, com o último tentáculo, escrevo uma grande verdade na sépia cansada das três da manhã: porquê oito tentáculos se nos bastam quatro?
Hoje tenho só quatro tentáculos, e quase posso dizer que me chegam.
Não é essa uma definição feliz da velhice: aprender a aproveitar as pernas e os braços que se têm?
Mas também há uma inteligência na juventude, uma inteligência que passa quando envelhecemos, e que depois fingimos esquecer, para não avançarmos muito entristecidos. A inteligência da juventude é dizer a tudo que sim, sabendo que as coisas que correm mal só criam espaço para as outras que podem correr bem.
O medo de estar a perder pitada da vida, que depois ridicularizamos quando a idade nos obriga a escolher muito bem onde vamos gastar as poucas energias que nos restam, não é nenhuma estupidez. Faz parte da inteligência da juventude.
O acrónimo FOMO ajuda a não pensar mais no assunto, mas a vida de um polvo é curta e, quando os tentáculos são bem empregues, até pode parecer que falta um.
Um polvo a dançar bem torna inimaginável que se consiga dançar só com seis ou sete braços.
Faz sentido ir a todas, à procura do que é bom. É uma valentia. Sabe-se que a grande maioria das coisas vai ser uma desilusão, mas que outra maneira há de trabalhar a desilusão, senão preparando-a para o luxo de ser, um dia, deslumbrado? Quanto à inteligência, adapta-se sempre ao que tem, que remédio.
(Transcrito do PÚBLICO)