Convívio na prisão levou carcereiro a virar expert em facções

Diorgeres de Assis Victorio, de 51 anos, começou a trabalhar no sistema carcerário quando surgiram o PCC e seus rivais

atualizado 27/01/2023 22:37

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Arquivo Pessoal

São Paulo – O agente penal Diorgeres de Assis Victorio, de 51 anos, testemunhou o nascimento das facções criminosas dentro dos presídios paulistas desde que começou a trabalhar no sistema prisional, em 1994.

Naquela década, ele acompanhou de perto a disputa por território e influência entre o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade (CRBC), principal facção rival que resiste até hoje em São Paulo, como o Metrópoles mostrou no último sábado (21/1).

O convívio diário com presidiários, principalmente na Penitenciária de Tremembé, no interior paulista, e a ascensão das facções criminosas o instigaram a estudar uma problemática que há muito tempo deixou de estar restrita ao seu cotidiano como carcereiro.

O agente, que gosta de ser chamado de estudioso do cárcere, se formou em Direito pela Universidade de Taubaté, conta com uma pós-graduação em Direito Penal Econômico e Europeu, pela Universidade de Coimbra (Portugal), e atualmente é pesquisador do grupo “Polícia, Democracia e Sociedade” da Universidade de Buenos Aires (Argentina).

Em entrevista ao Metrópoles, Diorgeres Victorio relata sua experiência de quase 30 anos trabalhando ao lado de presidiários e o conhecimento que adquiriu  esmiuçando e mergulhando nos estatutos das facções criminosas. Leia a seguir:

Quando o Sr. percebeu que havia facções dentro dos presídios?

Fui zelador do raio 2 da Penitenciária 1 de Tremembé, hoje conhecida como Doutor Tarcizo Leonce Pinheiro Cintra. Na época, a primeira notícia sobre o PCC foi em 1995, por causa de uma rebelião (na Penitenciária de Hortolândia, interior paulista).

E as outras facções além do PCC?

Eu conversava muito com os presos. Trabalhava sozinho, pois os outros guardas tinham medo de ficar no meio dos detentos. Eles pegaram confiança em mim e, por meio deles, fiquei sabendo de um preso, de nome Edinho (Edson de Souza e Silva, líder do CRBC), que trabalhava, ou melhor, que mandava na cozinha, que andava armado com duas facas e comandava a cozinha. Eu resolvi, como se diz na cadeia, “dar um peão” para ver quem era esse tal de Edinho que estavam falando, que escolhia os presos que trabalhavam, despedia, colocava outros no lugar. Os funcionários tentavam colocar outras pessoas (na cozinha), mas ele não permitia.

Por quanto tempo isso durou?

O Edinho se desentendeu com um preso na cozinha e deu uns tapas na cara dele. Daí, um outro preso fez o Edinho correr e o proibiu de voltar para o pavilhão onde estava preso. A cadeia estava “mil grau” (tensa), estava para virar (ter rebelião) para pegar ele, pois há uma frase na cadeia que explica isso. Os presos falam que “na cara de filho que a mãe beija, ninguém pode dar tapa.”

O que aconteceu depois?

Descobri que o Edinho tinha sido levado para a frente da cadeia e já estavam preparando um bonde (transferência) para levar ele embora. Ele não pôde nem buscar os pertences pessoais no raio (onde estava preso). Aí, eu estranhei. Descobri depois, pelos próprios presos, que o Edinho tinha fundado um partido (facção criminosa), que existia um tal de CRBC.

Como ele conseguia sobreviver no presídio sendo de uma facção rival do PCC?

Quando ele estava na cozinha não tinha história sobre CRBC. Só ficaram sabendo disso depois. Eu fui sabendo conforme iam chegando presos na cadeia que falavam sobre o assunto. Com o passar do tempo, alguns presos comentavam sobre “os caras de Guarulhos” que às vezes chegavam em Tremembé. Aí que fui investigar, perguntar de onde eram e eles diziam que eram da “penita” de Guarulhos (cidade onde a facção se originou). Daí eu fiquei sabendo que os presos queriam virar a cadeia para pegar esse pessoal de Guarulhos, porque eles eram do CRBC.

O que pensou nessa hora?

A gente ficou preocupado, pois o PCC queria matar os caras. Poderiam fazer a gente de refém para isso. Aí eu fui pegar informações com o povo do lado do PCC. Falei para eles que a cadeia estava uma zona, pois tinham mandado para lá o povo do CRBC. Aí me responderam que iam dar um jeito de pegar eles, mas que não seria em meu plantão porque eles me consideravam, pois eu os tratava como seres humanos que são. Os caras do PCC ficavam sabendo antes de nós que tinha gente do CRBC chegando.

Quando eles comentavam isso, como ficava o clima?

Uma vez eu fui ver um carro com presos do CRBC chegando. Geralmente, o detento não sabe direito para onde está sendo levado.

Aí eu fui tomar um refrigerante e vi que a viatura tinha chegado. Perguntaram os dados dos presos. Aí os presos perguntaram onde a gente estava. Quando falaram que estavam na P1 de Tremembé.

Eles falaram que podia quebrar eles na porrada, pois se negavam a entrar na unidade, cientes de que o local era reduto do PCC. A viatura quase virou de tanto que chacoalharam, diziam que iam morrer, mas que não fosse pela mão dos rivais. Isso na década de 1990.

Aí eu decidi estudar o assunto e me graduei em Direito.

Percebia, acompanhando o sistema, que muitas das mortes ocorridas eram dos caras do CRBC. Os caras caiam em alguma cadeia (do PCC), não dava tempo de ajudar. Jogavam os caras em um cercado de leão.

“Na verdade desde 1995 já observo claramente e existência do PCC. Então, observamos essa reiterada conversa do Estado de negar que existe facção criminosa.”

Quando de fato percebeu que havia mortes diretamente relacionadas à disputa entre as facções?

Na Secretaria da Administração Penitenciária há um sistema em que você joga o nome do preso e acompanha a movimentação deles. Nessa aí fui cruzando informação. E trabalhei também, por uns quatro anos, na Vara de Execução de Taubaté (interior de São Paulo) e via pedido de transferência para o seguro, de preso pedindo socorro. Ia cruzando informações e ia entendendo. Juízes e promotores faziam vista grossa e acontecia de os presos serem transferidos (para redutos inimigos), pois “preso bom é preso morto” na visão de alguns.

E como a Secretaria da Administração Penitenciária lidava com isso?

Ninguém admitia isso na época, mas as facções existiam e estavam ganhando espaço e força. O primeiro estatuto do PCC foi, inclusive, publicado em uma edição do Diário Oficial, de 1997, como parte de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, alertando sobre isso. O desenvolvimento das facções está na conta do Estado que deixou o fantasminha virar uma assombração gigantesca que assusta todo mundo.

Sendo um funcionário do sistema carcerário, como se sente ao constatar unidades nas mãos de facções?

Infelizmente em razão dessa omissão do Estado e essa política. Eu trabalho para que as pessoas possam entender as facções, mas o Estado não gosta disso. Houve época que até proibiram de falar o nome do PCC, por exemplo, alegando que as pessoas procurariam a facção. Mas quem quer vai atrás e quem não quer não se envolve, independentemente disso. Chegaram (criminosos) até a me convidar pra entrar pra facção mas eu neguei, é claro.

homem sendo escoltado
Marcola (de azul) é apontado como o líder máximo do PCC

Quais fatores o Sr. atribui para o surgimento e fortalecimento das facções criminosas, dentro e fora dos presídios?

Se observamos o primeiro e segundo estatutos do PCC, assim como o estatuto do Comando Vermelho (organização criminosa do Rio de Janeiro, antiga aliada e atualmente inimiga do PCC) as facções nos dizem que surgiram para combater a tortura e o sofrimento no cárcere. Então, para mim, as facções surgiram para acabar com a prática de crime praticado pelo Estado dentro das prisões. Que ao invés de cumprir com a obrigação prevista em lei, age às margens dela. Isso foi o principal motivo para o surgimento de facções criminosas e gangues prisionais, é uma forma que eles (presos) encontraram para combater essa prática, esse desvio na execução da pena.

A pena deveria ter uma qualidade, prevista na Lei de Execução Penal, e essa qualidade prevista, que o Estado deveria cumprir, vendo o princípio da legalidade, o Estado não cumpre. A única forma que os aprisionados entenderam como meio de coibir esse estado criminoso foi se unir e criar as facções criminosas.

Isso dá uma sensação de pacificação nos presídios. Qual o custo dessa pacificação para a sociedade?

A sociedade, em virtude da pacificação, ela acaba sendo ludibriada pela facção criminosa que, com essa prática, acaba aumentando cada vez mais o poderio dentro e fora dos presídios.

A sociedade não consegue perceber, até porque o Estado engana essa sociedade, nos dando a impressão de que muitas vezes o confinamento dos líderes nos RDDs (Regime Disciplinar Diferenciado), ou em presídios federais, acaba permitindo que haja pacificação, nos dando a entender que o Estado conseguiu quebrar o poderio das facções. Mas isso é um grande erro e a sociedade acaba pagando a conta, porque as facções criminosas acabam dizendo para os simpatizantes que o controle é delas, que é muito interessante que eles adentrem, sejam batizados na facção, que ela está cada vez mais forte, mais poderosa, possui laços com outras organizações criminosas espalhadas pelo mundo, com braços, tentáculos em outros territórios, em outros países, e isso é um fato que infelizmente nós não podemos discordar.

E mesmo os presos e outros em liberdade, não “faccionados”, acabam não tendo como não acreditar, porque essa fala, ela é tão clara, tão cristalina quanto água.

Acredita que a leniência das autoridades contribuiu para isso?

A resposta do Estado quanto a existência do PCC, em 1997, era a de que a facção não existia. Então, temos aí um problema muito sério, quanto a essa negatividade do Estado ao informar a existência das facções criminosas. Isso começou a mudar, podemos observar, por meio de um ofício circular de 19 julho de 2000, por assunto facções no presídio, documento assinado pelo então secretário da Administração Penitenciária Nagashi Furukawa, que fala sobre a existência de grupos criminosos (dentro dos presídios), não sendo mais negada pela administração pública de São Paulo desde então.

Antes, essa negação sempre existiu. Na verdade desde 1995 já observo claramente e existência do PCC. Então, observamos essa reiterada conversa do Estado de negar que existe facção criminosa. Isso possibilitou e muito o fortalecimento desses grupos criminosos, assim como os desrespeitos aos princípios e garantias fundamentais da dignidade humana aos sentenciados. Isso é um fato muito importante e utilizado pelas facções como bandeira para angariar novos membros.

Isso explicaria a atual inexistência de rebeliões? Seria um reflexo do controle das facções dentro do sistema carcerário?

As rebeliões não ocorrem mais tendo em vista que isso é muito prejudicial aos partidos criminosos, porque quando temos rebeliões, dentro dos presídios, as pessoas que estão ali responsáveis por controlar a organização criminosa, chamados de “pilotos”, “torres”, etc., responsáveis pela disciplina o pelo tráfico, não irão permitir que outros criminosos ou outras facões tomem o território deles. E quando tem rebelião, descobrimos quem são os lideres, que acabam sendo transferimos. Então, eles acabam não praticando a rebelião, pois isso é prejudicial para eles. As rebeliões desestruturam as facções, deixam o local sem um representante da organização e o território deles acaba sendo perdido, em meu entendimento.

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