Mangabeira Unger: Lula tenta reviver o passado e aposta no “pobrismo”

Para Roberto Mangabeira Unger, ex-ministro de Lula, Brasil "não tem um projeto de desenvolvimento" e governo se curva ao mercado financeiro

atualizado 15/11/2023 9:23

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Imagem colorida de Roberto Mangabeira Unger durante sessão no Congresso Nacional. Ele usa óculos e veste um terno escuro com camisa e gravata claras - Metrópoles Divulgação

Quase 11 meses depois de sua posse como presidente da República pela terceira vez, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se limita a tentar repetir velhas fórmulas e programas adotados em seus dois governos anteriores, entre 2003 e 2010. A avaliação é do filósofo e sociólogo Roberto Mangabeira Unger, de 76 anos, professor de Direito na Universidade de Harvard, que integrou as gestões do PT e hoje é um crítico da administração federal.

Em entrevista ao Metrópoles, Mangabeira Unger afirma que “o Brasil não tem um projeto de desenvolvimento” e que tanto Lula quanto o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, se preocupam mais em agradar ao mercado financeiro do que em apresentar ao país uma “estratégia produtivista” capaz de promover o crescimento econômico sustentável.

“O governo Lula é a continuação não só dos governos anteriores do próprio Lula, mas de todos os governos desde Fernando Henrique Cardoso, incluindo o de Jair Bolsonaro. Todos esses governos são o casamento entre o rentismo financeiro e o pobrismo”, diz o ex-ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos de Lula (de 2007 a 2009) e Dilma Rousseff (em 2015).

“O governo reconcilia os interesses financeiros, ajoelha-se diante deles, na esperança de que lhe deem o capital, e distribui um restinho aos pobres, por meio desses programas de transferência de renda”, critica Mangabeira Unger.

Amigo do ex-candidato ao Planalto Ciro Gomes, com quem trabalhou em várias campanhas presidenciais, Mangabeira Unger deixou recentemente o PDT, que participa do primeiro escalão do governo Lula – o presidente nacional do partido, Carlos Lupi, é ministro da Previdência Social. Na conversa com a reportagem, além de política e economia, o professor de Harvard tratou do novo Marco Fiscal, disse que a reforma tributária “anda em uma direção desejável”, classificou como “fantasia” o compromisso do governo com o desenvolvimento sustentável e apontou “simplismos e fingimentos” nos discursos de lideranças políticas no Brasil, como Lula.

“O país não pode ficar rezando no altar dos mercados financeiros e combinar isso com o pobrismo, com a distribuição de esmola aos pobres, como vemos hoje”, afirma.

Leia os principais trechos da entrevista de Roberto Mangabeira Unger ao Metrópoles:

Neste primeiro ano de governo, o novo Marco Fiscal e a reforma tributária avançaram no Congresso. Qual é a sua avaliação sobre o trabalho da equipe econômica e do ministro da Fazenda, Fernando Haddad?

Claramente, o Brasil não tem um projeto de desenvolvimento. A preocupação do ministro Haddad parece ser agradar e ganhar a confiança do mercado financeiro. Ganhar confiança financeira para propiciar investimento nacional e estrangeiro, de modo que isso possa estimular o crescimento. Não há nenhum país do mundo que tenha se desenvolvido assim, que tenha alcançado o primeiro plano da economia mundial dessa forma. Os economistas considerados progressistas no Brasil, quando perderam a fé no estatismo e no marxismo, descambaram para um keynesianismo vulgar. Nós precisamos, de fato, ter um escudo fiscal para organizar uma estratégia de desenvolvimento ousada e rebelde. Precisamos de superávit, de reservas cambiais e assim por diante. Tudo isso é verdade. Mas precisamos de tudo isso justamente para não depender da confiança financeira, para poder ousar, para ter margem de manobra, para que o Brasil e o seu governo não tenham de ficar de joelhos diante do capital financeiro. No mundo, em geral, o que conta, no curto prazo, é a religião dos mercados. Mas, no médio prazo, ela não terá importância. O que contará é a realidade. Se não fosse assim, a grande maioria do capital de risco não iria para a China, que desafiou todos os palanques da plataforma dessa confiança financeira. No médio prazo, o que importa são o crescimento e as possibilidades de ganho que ele propicia.

O que o senhor achou da reforma tributária aprovada pelo Congresso? Ficou de bom tamanho ou as exceções incluídas no texto preocupam?

A reforma, em geral, anda em uma direção desejável para o país, que é a reorganização do sistema tributário em torno do IVA (Imposto sobre Valor Agregado). Se preservado em sua forma autêntica, o IVA é, conceitualmente, um imposto neutro em relação ao sistema de preços relativos e permite maximizar a arrecadação, minimizando o trauma. Para compreender a relação do orçamento com a desigualdade no país e a distribuição de oportunidades econômicas e educativas, é preciso observar alguns princípios. O que conta mais não é a distribuição ajustada da renda e da riqueza, aquela operada pela tributação progressiva e pelo gasto social redistribuidor. O que conta é a distribuição fundamental originária das oportunidades e das capacitações, antes de o gasto social e a tributação progressiva intervirem. A possibilidade de corrigir, retrospectivamente, o que o mercado faz é muito limitada. Se há grandes desigualdades, a redistribuição compensatória por gasto social ou por tributação progressiva teria de ser gigante e, muito antes de alcançar a dimensão necessária para corrigir essas desigualdades, começaria a desorganizar a economia, subvertendo os incentivos e arranjos estabelecidos. Em relação ao orçamento, que tem um papel acessório na distribuição das oportunidades, o que é mais importante não é o perfil progressivo da arrecadação, do lado da receita, mas o nível agregado da despesa e como se gasta. O sistema tributário americano, por exemplo, privilegia o imposto progressivo sobre a renda pessoal. As social-democracias europeias, muito mais igualitárias, privilegiam um imposto reconhecidamente regressivo, que é equivalente funcional do IVA. As social-democracias europeias arrecadam 10% a mais do PIB do que os Estados Unidos. E aquilo que perdem, em progressividade, do lado da arrecadação, ganham em dobro no momento de gasto. Por que os europeus conseguem arrecadar mais com menos trauma econômico? Porque privilegiam um imposto neutro em relação ao sistema de preços relativos. Assim, eu julgo que a reforma tributária, em geral, é boa porque anda nessa direção. Agora, é evidente que o princípio geral foi comprometido por uma multiplicação de casuísmos que macularam a integridade dessa lógica. Esse foi o custo. Determinados bens e serviços foram tratados de forma diferente de outros e houve exceções de todo tipo.

Hoje, o mercado parece duvidar da capacidade do governo de cumprir a meta de zerar o déficit primário em 2024. O senhor acredita no déficit zero ou é quase impossível?

Há essa ideia absurda de que o objetivo do Estado deve ser agradar ao mercado financeiro, gerando superávit. Veja a questão da política dos juros. Quando esse processo começou, não havia nada na estrutura da dívida brasileira que justificasse o país ter um múltiplo do juro mais alto do mundo. Era pura extorsão do cartel bancário. Era só uma máfia de poderosos que conseguiam arrancar isso do Estado brasileiro. À medida que esses juros foram praticados, a situação fiscal do Estado começou a degenerar, de tal forma que, hoje, a tendência é a lenta e progressiva degeneração das contas públicas. Não é a causa da política de juros altos, é a consequência dessa extorsão praticada ao longo do tempo. Essa teoria de que a situação fiscal exige um juro alto acaba se validando como uma espécie de profecia que se autocumpre. Mas a base dela foi uma extorsão praticada pelo cartel bancário. A consequência é que o povo brasileiro, que já sofreu tanto, terá de sofrer ainda mais. Teremos de enfrentar grandes sacrifícios. A dúvida que resta é se esses sacrifícios serão feitos em troca da organização de um projeto produtivista no país, que eleve o nível de produtividade e inclua as maiorias, ou se vai ser em troca de nada, apenas uma homenagem ao impulso predatório dessa elite rentista.

Recentemente, o senhor disse que o presidente Lula “parece morar no passado”, como se o seu terceiro mandato fosse uma mera continuidade dos dois anteriores. Depois de quase um ano de governo, continua com essa mesma impressão?

Absolutamente, sim. O governo Lula é a continuação não só dos governos anteriores do próprio Lula, mas de todos os governos desde Fernando Henrique Cardoso, incluindo o de Jair Bolsonaro. Todos esses governos são o casamento entre o rentismo financeiro e o “pobrismo”. O governo reconcilia os interesses financeiros, ajoelha-se diante deles, na esperança de que lhe deem o capital, e distribui um restinho aos pobres, por meio desses programas de transferência de renda. Como o Brasil é extraordinariamente rico em recursos naturais, nós conseguimos evadir o enfrentamento desses dilemas e andar de lado. Agricultura, pecuária e mineração pagam as contas do consumo urbano. Mas o Brasil não é a Nova Zelândia. Somos um país grande e populoso em que há muito mais gente do que ovelha ou boi, de modo que isso não funciona, não basta. Serve apenas para disfarçar os problemas. Essa é a essência das dificuldades do país. Enquanto isso, o presidente segue desatento, correndo o mundo, preocupado em consolidar a sua posição como celebridade global. E o Brasil está abandonado à própria sorte.

Em reunião com ministros no início do mês, Lula pediu que eles fossem “os melhores gastadores de dinheiro em obras de interesse do povo brasileiro” e afirmou: “Para quem está na Fazenda, dinheiro bom é dinheiro no Tesouro; para quem está na Presidência, dinheiro bom é transformado em obras“. Esse discurso não é equivocado? Não confunde a opinião pública?

Os políticos teriam de fazer um esforço pedagógico para explicar certas coisas ao povo, em linguagem simples, mas eles não querem. Querem resvalar em simplismos e fingimentos, como esse discurso do Lula. É um discurso bobo porque não atinge o centro da questão, que é a organização de nossa estratégia produtivista. Nós não temos uma indústria atual, não estamos inseridos nesse vanguardismo produtivo. Eu estou propondo que nós queimemos etapas, instalando a vanguarda produtiva da economia do conhecimento de tal forma que ela não seja apenas uma ilha, que não tenha esse caráter insular. Que nós consigamos oferecê-la à maioria do povo para que a população possa usufruir disso.

Segundo o FMI, o Brasil deve terminar o ano entre as 10 maiores economias do mundo, considerando o PIB nominal, embora continue muito atrás no ranking do PIB per capita. Por que é tão difícil para o país dar um verdadeiro salto de desenvolvimento?

É sempre difícil dar esse salto de desenvolvimento. O número de países que tiveram esse milagre econômico é relativamente pequeno. Quem fez isso que eu estou descrevendo, exatamente nesses termos? Os EUA, no início do século XIX; o Japão, em meados do século XIX; a Alemanha, no final do século XIX; os tigres asiáticos, em meados do século XX; e a China, na segunda metade do século XX. Só isso. O resto continua vegetando, com poucas exceções. O normal não é o crescimento. O normal é o estado vegetativo se conformando com a mediocridade, especialmente em países como o Brasil, nos quais há uma alternativa fácil, a riqueza fácil da natureza. Essa riqueza fácil da natureza substitui a riqueza difícil da inteligência. Peguemos o exemplo do estado do Mato Grosso, no Brasil Central, que hoje é um dos grandes dínamos agrícolas do mundo. Toda a produção do Mato Grosso ocorre em menos de 15% de seu território. Nós temos essa fronteira agrícola altamente concentrada e excludente que emprega uma porção pequena da nossa força de trabalho. É um falso milagre de crescimento. Não é algo que envolva a maioria da população brasileira, que permita a ela participar da construção do país.

O senhor lançou o projeto “União da Inteligência com a Natureza” que propõe medidas como o incentivo à pesquisa e à tecnologia voltadas para a sustentabilidade. Quais medidas concretas podem ser tomadas nessa área?

Até o final do século XX, havia uma atalho para o crescimento econômico rápido: a industrialização convencional, o fordismo industrial. Esse atalho está deixando de funcionar. Um país depois do outro, muitos estão se desindustrializando. O Brasil é apenas um daqueles que se desindustrializam mais rapidamente. A alternativa é a nova vanguarda da economia do conhecimento. Onde essa nova vanguarda existe, nas grandes economias do mundo, ela se faz presente apenas de forma insular: uma série de ilhas de vanguardas que excluem a grande maioria dos trabalhadores e das empresas. O dilema é o seguinte: o velho caminho se fechou e o novo caminho parece inacessível. Nós teríamos de construí-lo. O Estado brasileiro é um dos únicos que contam com muitas das ferramentas que seriam necessárias à execução dessa tarefa. Muitas dessas ferramentas são o legado arruinado do corporativismo varguista, como a Embrapa, o Sebrae, o Senai, o Senac e os bancos públicos de desenvolvimento. Estão carcomidos e pervertidos por não se mobilizarem em favor de um projeto produtivista. Teríamos de resgatá-los e dedicá-los a essa função. O primeiro passo seria usar essas ferramentas para dar à retaguarda improdutiva da economia brasileira acesso aos recursos e às práticas da produção avançada. Não só as pequenas e médias empresas da periferia econômica, mas a massa de agentes econômicos autônomos, que ficam às sombras da informalidade. Como podemos aspirar a uma dinâmica inclusiva de produtividade se a maioria da nossa força de trabalho é uma horda amorfa e desprotegida de empresas primitivas e trabalhadores autônomos e improdutivos? Esse é o projeto produtivista que nos falta.

O atual governo está, efetivamente, comprometido com o desenvolvimento sustentável?

Não. Definitivamente, não. Eu olho para a Amazônia, que é um exemplo claríssimo disso. Nós temos agora, na Amazônia, uma política que a vasta maioria dos habitantes da região rejeita. É um extrativismo artesanal sem ciência, sem escala, sem tecnologia e sem futuro. Esse é o desenvolvimento sustentável do atual governo, é uma fantasia. O seringueiro tirando borracha das árvores, apanhando nozes do chão… Isso é uma brincadeira! A visão deles é a da Amazônia como um conjunto de parques temáticos, como se fosse uma grande Disneylândia passadista e não o que tem de ser: uma variante da economia do conhecimento. Nós precisamos da ajuda da ciência mundial para criar tudo o que falta. Falta até a tecnologia básica para manejar uma floresta tropical heterogênea como a nossa. Falta tudo.

O senhor disse, em maio deste ano, que “o Brasil chafurda na mediocridade”. Continuamos no mesmo ponto? Como o país pode sair dessa encruzilhada?

Sim, continuamos nessa situação. Totalmente. E dá uma pena enorme. Afinal, o nosso atributo nacional mais importante é essa vitalidade e o dinamismo extraordinário do Brasil, que aparecem de forma mais patente na maioria brasileira que hoje está abandonada. Como se um bando de banqueiros predatórios na Faria Lima fossem amigos do desenvolvimento de um país. É a maioria brasileira que deve ser empoderada, não os beneficiários cooptados. O país não pode ficar rezando no altar dos mercados financeiros e combinar isso com o “pobrismo”, com a distribuição de esmola aos pobres, como vemos hoje. Nós abandonamos o Brasil. Nós fechamos os olhos para o Brasil. Nós traímos o dinamismo brasileiro. Eu não me conformo.

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