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Renan contra Lira: Graciliano Ramos explica

Ao ler Renan Calheiros acusando Arthur Lira de ser "caloteiro" e de "bater em mulher", lembrei-me dos relatórios do prefeito Graciliano

atualizado 01/06/2023 8:21

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Renan Calheiros Daniel Ferreira/Metrópoles

Enquanto Lula defendia o ditador venezuelano Nicolás Maduro, o pau comia democraticamente em Alagoas. Alagoas, como todo mundo sabe, fica em Brasília. O senador Renan Calheiros, filho ilustre do seu estado, partiu para cima do presidente da Câmara, Arthur Lira, outro insigne rebento alagoano.

Renan Calheiros distribuiu os seguintes mimos no Twitter:

“Triste exemplo: Lira é caloteiro, costuma não pagar o que deve. Pior, desvia dinheiro público e bate em mulher — deu uma surra de 2h em Julyenne, a ex-esposa e mãe de seus filhos. Confesso que aprovei a Lei Maria da Penha pensando em punir meliantes como ele.”

Horas depois, Renan Calheiros voltou a salpicar mais delicadezas na mesma rede social:

“Os podres de Lira vão se acumulando. Desvios, chantagens, achaques, golpismo, agressão contra a mãe dos filhos. Não é a inteligência artificial do ChaGPT que diz. É a própria vítima da covardia, Julyene Lins, que amplias as denúncias contra o caloteiro. Faltam 580 dias para ele sair.”

Arthur Lira, como bom alagoano, ficou furioso com os tuítes (mesmo um sueco frio ficaria furioso, convenhamos), inclusive porque o STF decidiu que ele não batia na ex-mulher, ao rejeitar a acusação de violência doméstica contra o deputado. Segundo o Metrópoles e outros jornais, o presidente da Câmara mandou dizer a Lula, por meio de interpostos aliados, que, se o ministro dos Transportes, Renan Filho, filho de Renan Calheiros, continuasse no governo, a vida do presidente petista na Câmara ficaria mais difícil do que já está. No Twitter, Arthur Lira disse que não pediu a cabeça do ministro coisa nenhuma, mas que exige respeito! (bem exclamativo). A gente sabe que ninguém pede a cabeça de ninguém em Brasília.

Só para constar, Renan Calheiros nunca foi acusado de bater em mulher. Na seara doméstica, ou nas adjacências dela, o senador foi acusado apenas de receber dinheiro de notório lobista de empreiteira, para pagar a pensão a uma filha que teve fora do casamento. Em troca, o senador fazia emendas que beneficiavam a empresa que repassava recursos ao lobista, dizia a acusação. Mas o STF também decidiu que Renan Calheiros não fez nada disso e o absolveu. Antes da condenação de Fernando Collor de Mello, havia apenas inocentes em Alagoas.

Quando Alagoas ainda não ficava em Brasília, até porque Brasília ainda não havia, o escritor Graciliano Ramos foi prefeito de Palmeira dos Índios. Lembrei-me de Graciliano Ramos ao acompanhar a briga entre Renan Calheiros e Arthur Lira. A experiência político-administrativa levou o escritor a detestar ainda mais os coronéis do seu estado.

Não conheci Graciliano Ramos, mas tenho idade suficiente para ter sido amigo e editor do seu filho, o igualmente escritor Ricardo Ramos. Foi ele quem me recomendou que lesse os relatórios de prestação de contas que o pai, como prefeito, enviava ao governador de Alagoas, no final da República Velha. 

Os relatórios são tão primorosos na sua vida seca, que chamaram a atenção mesmo numa época em que havia brasileiros que sabiam escrever. Prefira os relatórios do prefeito Graciliano Ramos aos tuítes de Renan Calheiros e de Arthur Lira. O escritor já explicava tanto o senador como o deputado antes de eles nascerem. Já explicava o Brasil. O Brasil, como todo mundo sabe, fica em Alagoas. Transcrevo alguns trechos do relatório de janeiro de 1930:

Cemitério

Pensei em construir um novo cemitério, pois o que temos dentro em pouco será insuficiente, mas os trabalhos a que me aventurei, necessários aos vivos, não me permitiram a execução de uma obra, embora útil, prorrogável. Os mortos esperarão mais algum tempo. São os munícipes que não reclamam.

Iluminação

A Prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o fornecimento de luz. Apesar de ser o negócio referente a claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras. É um blefe. Pagamos até a luz que a lua nos dá.

Instrução

Instituíram-se escolas em três aldeias: Serra da Mandioca, Anum e Canafístula. O Conselho mandou subvencionar uma sociedade aqui fundada por operários, sociedade que se dedica à educação de adultos.

Presumo que esses estabelecimentos são de eficiência contestável. As aspirantes a professoras revelaram, com admirável unanimidade, uma lastimosa ignorância. Escolhidas alguma delas, as escolas entraram a funcionar regularmente, como as outras.

Não creio que os alunos aprendam ali grande coisa. Obterão, contudo, a habilidade precisa para ler jornais e almanaques, discutir política e decorar sonetos, passatempos acessíveis a quase todos os roceiros.

Viação e Obras Públicas

Possuímos uma teia de aranha de veredas muito pitorescas, que se torcem em curvas caprichosas, sobem montes e descem vales de maneira incrível. O caminho que vai a Quebrângulo, por exemplo, original produto de engenharia tupi, tem lugares que só podem ser transitados por automóvel Ford e por lagartixa. Sempre me pareceu lamentável desperdício consertar semelhante porcaria.

Reformadores

O esforço empregado para dar ao Município o necessário é vivamente combatido por alguns pregoeiros de métodos administrativos originais. Em conformidade com eles, deveríamos proceder sempre com a máxima condescendência, não onerar os camaradas, ser rigorosos apenas com os pobres diabos sem proteção, diminuir a receita, reduzir a despesa aos vencimentos dos funcionários, que ninguém vive sem comer, deixar esse luxo de obras públicas à Federação, ao Estado ou, em falta destes, à Divina Providência.

Belo programa. Não se faria nada, para não descontentar os amigos: os amigos que pagam, os que administram, os que hão de administrar. Seria ótimo. E existiriam por preço baixo uma Prefeitura bode expiatório, magnífico assunto para comérage de lugar pequeno.

Projetos

Tenho vários, de execução duvidosa. Poderei concorrer para o aumento da produção e, consequentemente, da arrecadação. Mas umas semanas de chuva ou de estiagem arruínam as searas, desmantelam tudo – e os projetos morrem.

Iniciarei, se houver recursos, trabalhos urbanos.

Há pouco tempo, com a iluminação que temos pérfida, dissimulava-se nas ruas sérias ameaças à integridade das canelas imprudentes que por ali transitassem em noites de escuro.

Já uma rapariga aqui morreu afogada no enxurro. Uma senhora e uma criança, arrastadas por um dos rios que se formavam no centro da cidade, andaram rolando de cachoeira em cachoeira e danificaram na viagem braços, pernas, costelas e outros órgãos apreciáveis.

Julgo que, por enquanto, semelhantes perigos estão conjurados, mas dois meses de preguiça durante o inverno bastarão para que eles se renovem. 

Empedrarei, se puder, algumas ruas.

Tenho também a ideia de iniciar a construção de açudes na zona sertaneja.

Mas para que semear promessas que não sei se darão frutos? Relatarei com pormenores os planos a que me referi quando eles estiverem executados, se isto acontecer.

Ficarei, porém, satisfeito se levar ao fim as obras que encetei. É uma pretensão moderada, realizável. Se não realizar, o prejuízo não será grande.

O Município, que esperou dois anos, espera mais um. Mete na Prefeitura um sujeito hábil e vinga-se dizendo de mim cobras e lagartos.

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