Com Bruna Lima, Edoardo Ghirotto, Eduardo Barretto e João Pedroso de Campos

Relação Brasil-EUA não muda se Trump vencer, diz chanceler de Lula

Em entrevista à coluna, o chanceler Mauro Vieira ainda falou sobre a Argentina de Javier Milei, as crises da Venezuela e a guerra na Ucrânia

atualizado 26/12/2023 13:19

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O ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira Márcio Batista/MRE

Se Donald Trump for eleito o novo presidente dos Estados Unidos em novembro de 2024, nada mudará na relação do governo brasileiro com o país norte-americano, em vínculo que celebrará o bicentenário no ano que vem. A promessa é de Mauro Vieira, chanceler de Lula e o único que, em 2023, viajou mais que o próprio presidente para tirar do papel a promessa do petista de “devolver o Brasil ao mundo”, depois de quatro anos de isolamento na política externa global.

Os Estados Unidos serão um tema central para Vieira em 2024, pela comemoração do bicentenário de relação diplomática — devido ao reconhecimento pelos Estados Unidos, em 1824, da independência brasileira, o que só não ocorreu antes da Argentina, em 1823 — e, principalmente, pelas eleições em que Joe Biden enfrentará Trump.

Em entrevista à coluna, em seu gabinete no Itamaraty, Vieira falou ainda da relação entre Lula e Javier Milei, disse ter expectativa de que os dois se encontrem ainda no primeiro semestre de 2024 e evitou falar sobre as ofensas do argentino a Lula nas eleições.

Sobre a Venezuela, disse esperar que Nicolás Maduro cumpra a promessa de garantir eleições justas, limpas e transparentes em seu país, em dezembro, e reforçou a aposta na via diplomática para resolver a disputa por Essequibo, na Guiana.

Leia a entrevista abaixo.

Desde o começo do ano, houve várias tentativas do presidente de costurar pelo menos uma reunião para se falar da paz na Ucrânia, ele falou disso muitas vezes. Qual sua sensação, ao chegar ao fim do ano e ainda não haver no mundo uma conversa séria sobre a paz na Ucrânia? Vocês continuarão tentando no ano que vem?

O presidente não apresentou uma iniciativa concreta, porque, inclusive, havia outras. O que ele fez foi, repetidamente, um chamamento à razão a todos os países que têm condição e falam com os dois lados, para que se promova algum tipo de contato e conversa entre as duas partes. Isso ele fez e continuará fazendo. Agora, tem os atores que estão mais diretamente envolvidos e próximos, que precisariam também aderir a essas iniciativas e ouvir um pouco esse chamamento. Ele não se arrogou nenhuma iniciativa em que ele fosse o negociador. Ele só disse que precisamos parar, todos os países que defendem a paz, que amam a paz, e promover um encontro das partes e uma conversa. Foi só o que ele fez, e esperamos que isso aconteça em algum momento, porque já é uma guerra de dois anos.

Agora parece ainda uma coisa distante, considerando o que China, Rússia, Estados Unidos e a própria Ucrânia vêm falando. Não parece que, em 2024, teremos um desfecho da guerra…

Nós fazemos votos de que sim, que aconteça algum passo importante, algum avanço. Agora, vai depender dos atores que você mesmo mencionou. Eles precisam também tomar iniciativas.

Em que medida uma eventual vitória de Donald Trump em 2024 afeta o Brasil e os esforços dos dois países de reconsolidar suas democracias depois de Bolsonaro e do próprio Trump?

A relação com os Estados Unidos é importantíssima e prioritária. Ano que vem vamos celebrar 200 anos de relações bilaterais, vamos ter uma série de iniciativas para celebrar essa marca.

Joe Biden vem ao G20?

Esperamos que venha, mas é mais do que compreensível que se for junto com a eleição… Mas o que eu queria dizer é que os Estados Unidos é um país importante, temos uma data importante a celebrar. Só um país reconheceu a independência do Brasil antes, que foi a Argentina. A visita do presidente Lula ao presidente Biden foi muito boa, muito positiva. Depois, houve duas iniciativas: uma lançada à margem da ONU e outra à margem da cúpula do G20 na Índia, uma sobre trabalho e outra sobre biocombustíveis. Acabamos de receber a visita da secretária de Comércio dos Estados Unidos, que veio presidir a sessão americana do CEO Forum, criado no início do segundo mandato do presidente Lula, período em que eu estava em Washington como embaixador. É um encontro importantíssimo, fundamental, dos grandes empresários dos dois lados. Temos um comércio importante, Estados Unidos tem o maior estoque de investimentos no Brasil, é uma relação muito importante. Ganhará quem o povo americano escolher, nós vamos continuar a dialogar com o novo governo ou o governo reeleito do presidente Biden, porque os interesses entre os dois países são muito grandes, são importantes e vai se continuar conversando.

Se Trump ganhar não muda nada na relação?

Não, da nossa parte, não. Vamos continuar com o mesmo interesse e perseguindo os mesmos objetivos, desenvolvendo os mesmos programas.

Como foi encontro com o novo presidente da Argentina, Javier Milei?

Foi muito bom, estive duas vezes com ele. Logo depois que ele voltou do Congresso para a Casa Rosada, ele me recebeu, antes de qualquer outro visitante estrangeiro, chefe de Estado. Tivemos uma conversa rápida, mas muito cordial, em que ele disse também que a relação da Argentina com o Brasil é muito importante, fundamental, e que ele quer manter essa relação no mais alto nível, com todo o entendimento e transparência dos dois lados, porque é indispensável para a Argentina e para o Brasil termos um bom relacionamento.

Ele falou alguma coisa sobre Lula? Fez algum aceno com desculpas?

Levei os votos do governo brasileiro e do presidente, de êxito, e ele retribuiu. Respondeu aos votos que eu levei.

O que está sentindo dessas duas semanas após a posse? Deu para perceber como será a tônica da relação com a Argentina?

Vai ser muito boa. Quinze dias antes da posse, a ministra do Exterior, Diana Mondino, esteve aqui comigo, conversamos um domingo durante uma hora. Depois a convidei para almoçar, conversamos e tratamos dos assuntos de interesse do Brasil e da Argentina no contexto regional, no contexto do Mercosul, o contexto multilateral em geral. Tratamos de todos os temas que podem ser discutidos entre os dois países, das questões de comércio bilateral no âmbito do Mercosul, que é muito importante para nós. O comércio do Brasil com o Mercosul, incluindo todos os países do Mercosul, é muito importante em termos de qualidade e quantidade. Em qualidade é o melhor de todos, tem muitos produtos industrializados, semi-industrializados. E o volume é importante, são mais de US$ 40 bilhões. Tratamos disso, ela me descreveu um pouco o perfil do governo, como seria o governo, como seriam as primeiras iniciativas que tomariam, sem entrar em detalhes, dos programas econômicos para administrar um ajuste da economia, que eles diziam necessário. Estamos agora esperando e acompanhando, nossa Embaixada acompanha. Estamos vendo como vai ser. Desejamos muito sucesso.

Tem espaço em 2024 para haver um encontro entre Milei e Lula?

Sim, pode acontecer. Aliás, eles se encontrarão se ambos forem à cúpula do Mercosul no fim de junho, em Assunção, que agora a presidência está com o Paraguai. Pode ser antes, depende, encontros de chefes de Estado são sempre negociados e acertados com antecedência, nunca é uma coisa ocasional.

Seu colega de Esplanada Paulo Pimenta havia dito, após a vitória de Milei, que só daria para ter uma relação se houvesse pedido de desculpas de Milei pelas ofensas que fez a Lula. Isso é fundamental?

Não sei, temos que tratar. Não tenho nada a acrescentar.

Ainda sobre América do Sul, todo o esforço do governo brasileiro, desde o início do mandato, é tentar empurrar a Venezuela de volta ao caminho democrático. Há um acordo com o qual Nicolás Maduro se comprometeu, de garantir eleições livres, limpas, na Venezuela. Pelo que está se desenhando, segue confiante de que ele vai manter essa promessa?

Estamos trabalhando com esse objetivo. As eleições estão, em princípio, marcadas para dezembro do próximo ano. Pela legislação venezuelana, elas devem ser fixadas, e a data, formalmente anunciada seis meses antes. Estamos trabalhando com esse objetivo. Houve um grande acordo entre o governo e a oposição, que foi assinado em Barbados há dois ou três meses. O presidente Lula designou o embaixador Celso Amorim para representá-lo nessa assinatura, que é um passo importante para as eleições. Tudo está caminhando bem. É importante dizer que, entre as iniciativas de política externa desse ano, mandamos um embaixador, reabrimos a Embaixada na Venezuela e vamos agora reabrir os consulados. Era um absurdo ter fechado por diferença ideológica. Você não pode deixar de falar com um país que tem 2.200 km de fronteira seca na Amazônia e onde vivem 20 mil brasileiros. Um país que tem a maior reserva de petróleo, enfim, não pode deixar de tratar com um país assim. Tomamos a iniciativa de reabrir a Embaixada e agora vamos trabalhar para que os brasileiros possam ter atendimento consular.

A via diplomática, na sua visão, vai ser bem-sucedida na solução da disputa pela região de Essequibo, na Guiana, agora que as partes estão conversando?

Esperamos que sim, foi uma proposta do presidente Lula na cúpula do Mercosul. Ele propôs que a Celac, na pessoa do presidente atual, o primeiro-ministro de São Vicente e Granadinas, pudesse chamar as partes para uma conversa. Acho que foi fundamental, porque, inclusive, foi aceito pelos dois chefes de Estado. Tanto Venezuela quanto Guiana aceitaram estar presentes, com outras testemunhas. Mais uma vez, o presidente designou o embaixador Celso Amorim para representá-lo e ouvir as partes nessa reunião. O secretário-geral da ONU nomeou o seu chefe de gabinete e outro funcionário da área política do secretariado da ONU, houve presença de vários chefes de Estado e de governo do Caribe. Foi um passo importantíssimo, porque é o início de um diálogo. Deve haver outras, em princípio há uma outra reunião já marcada, isso vai um pouco encontrando soluções para a questão bilateral.

Ontem houve lançamento de uma revista sobre temas afins ao ministério e, na cerimônia, o senhor falou sobre o silenciamento que houve durante o governo anterior ao trabalho intelectual dos diplomatas, seus colegas. Esse episódio se soma a outros, em que diplomatas no governo Bolsonaro chegaram muito perto de uma linha em que, para muitos do Itamaraty, deveriam ser tratadas na Corregedoria. Por exemplo, o seu colega André Chermont foi um dos organizadores do evento em que o TSE condenou o ex-presidente e o tornou inelegível por receber embaixadores. Nesse ano, por mais que haja um esforço de união, de não criar arestas, não faltou um olhar um pouco mais duro sobre o que foram os quatro anos anteriores, especialmente o período do Ernesto Araújo?

Essa revista foi silenciada durante o governo anterior, nenhum número foi feito, porque havia restrições. Estamos e continuaremos tomando todas as medidas necessárias, examinando tudo o que aconteceu, tudo o que estiver fora dos padrões… Os diplomatas são funcionários de Estado, que obedecem a instruções. Nós vamos examinar e ver o que houve. Não há, em um primeiro momento, nada, não vi nada até agora que fosse uma questão de… (Corregedoria). Evidente que a orientação da política externa eu acho que foi desastrosa.

Mas não a ponto de ser um assunto de Corregedoria?

A Corregedoria examina questões de contato de relação das pessoas. Aí eu acho que é uma análise maior para saber se a política externa era benéfica ou prejudicial ao governo. No meu entender, prejudicial, mas aí é responsabilidade do governo anterior. As iniciativas que tomaram, os alinhamentos automáticos, as decisões de sair de grupos e de concertações multilaterais, aderir a outras, de um conservadorismo assustador. Isso foi muito prejudicial, é outra coisa, é a política externa. Acho até que deve ter sido julgada pelo eleitorado, porque não reelegeu o governo anterior. Talvez uma parte tenha estudado, tenha visto isso. Agora, não acho que seja questão de Corregedoria, questão disso, de examinar os resultados da política externa. A Corregedoria é para as questões de comportamento interno, de relacionamento entre os funcionários.

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