Em julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos, o governo brasileiro adotou uma mudança de paradigma no imbróglio que envolve a construção do Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão. Nesta quinta-feira (27/4), pela primeira vez, o governo do Brasil pediu desculpas pelo tratamento dado às comunidades tradicionais que ocupavam aquele território.
Esta também é a primeira vez que o Estado brasileiro é julgado em uma corte internacional em caso envolvendo comunidades tradicionais. As sessões aconteceram nessa quarta (26/4) e quinta na sessão itinerante da Corte na sede do Tribunal Constitucional do Chile, em Santiago. O Brasil é acusado de expulsar os quilombolas das terras que ocupavam historicamente.
O reconhecimento dos erros do Estado foi lido na corte internacional pelo advogado-geral da União, Jorge Messias, que realizou as alegações orais no tribunal.
“O Brasil gostaria de aproveitar essa oportunidade processual para reconhecer, formalmente, em caráter oficial, a violação aos direitos à propriedade e à proteção judicial, tais como estabelecidos na Convenção Americana [sobre Direitos Humanos]. Reconhecemos que o Estado brasileiro é responsável, internacionalmente, por violar o direito de propriedade neste caso porque não cumpriu o seu direito de promover a demarcação do território quilombola de Alcântara até o presente momento”, declarou Jorge Messias.
Veja a manifestação do advogado-geral:
Compõem a delegação brasileira membros do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), da Advocacia-Geral da União (AGU), dos Ministério das Relações Exteriores (MRE), da Defesa e da Igualdade Racial, do Comando da Aeronáutica e do Centro de Lançamento de Alcântara.
“Queremos apresentar uma postura pautada pelo respeito às comunidades e suas demandas, mas que também dialogue com a necessidade de avanço tecnológico da região e que possa primar pelo diálogo, com o intuito de construir alternativas sustentáveis”, afirmou Rita Oliveira, secretária-executiva do Ministério dos Direitos Humanos, antes do julgamento.
“Uma postura que dialogue com as comunidades remanescentes de quilombos, seus direitos, garantias e respeito à tradicionalidade, além de enfatizar a importância dessas comunidades para o desenvolvimento socioeconômico do país”, continuou secretária-executiva do MDHC. Ela conta que os representantes do Poder Público pretendem dar destaque à atitude responsiva do Estado brasileiro.
Corte internacional julgará Brasil por crimes contra quilombolas no MA
Grupo de trabalho
Nessa quarta-feira (26/4), o Palácio do Planalto instituiu um grupo de trabalho interministerial para buscar soluções para a demarcação de terras quilombolas em Alcântara. O Decreto nº 11.502 foi assinado pelo presidente em exercício, Geraldo Alckmin (Lula estava na Espanha), e publicado no Diário Oficial da União (DOU).
De acordo com o texto, o grupo vai propor alternativas para a titulação territorial das comunidades remanescentes que compatibilize os interesses dessas comunidades e os do Centro Espacial de Alcântara. Deverá também solicitar informações ao Programa Espacial Brasileiro sobre o resultado de trabalhos já realizados na região.
O grupo terá 120 dias para elaborar o ato normativo e deve concluir os trabalhos em até um ano, com a apresentação de relatório com indicação de diligências, discussões, consensos alcançados e propostas não consensuadas.
O GT terá a participação de vários ministérios e órgãos, e será composto por quatro representantes das Comunidades Remanescentes de Quilombos de Alcântara. A composição terá um representante dos seguintes órgãos:
- Advocacia-Geral da União, coordenadora
- Casa Civil
- Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação
- Ministério da Defesa;
- Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar
- Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania
- Ministério da Igualdade Racial
- Ministério das Relações Exteriores
- Secretaria-Geral da Presidência
- Agência Espacial Brasileira
- Comando da Aeronáutica
- Fundação Cultural Palmares
- Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)
O julgamento
O secretário de Assuntos Multilaterais Políticos do Ministério das Relações Exteriores, Carlos Márcio Bicalho Cozendey, chamou a atenção para o fato de que o Brasil aceita a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) desde 1998.
“O que a Corte julgar, é um compromisso internacional do Brasil aceitar. As audiências da CIDH são importantes para que os juízes entendam qual é a situação das vítimas. Obviamente é uma situação complexa, difícil, em que efetivamente o Estado falhou em muitos aspectos, mas é preciso que tudo isso seja enquadrado dentro das regras dos pactos de direitos humanos existentes na região”, afirmou o secretário.
Ouvida na condição de declarante, Maria Luzia da Silva Diniz é uma das vítimas do reassentamento obrigatório realizado na década de 1980, que resultou na formação de uma agrovila. Durante a audiência, ela contou que as dificuldades incluíram a perda do território e a falta de acesso a serviços essenciais, como saúde e educação.
“Tiraram tudo da gente. A gente queria pelo menos ter uma vida digna, e isso não aconteceu lá”, lamentou. “Quando a gente ia buscar uma manga, tinha que ser em outro povoado, então isso é uma coisa que dói, porque antigamente tínhamos tudo, a gente não precisava passar por humilhação. Essa comunidade não tinha um pé de fruta, então a gente tinha que ir em outras comunidades para dar aos nossos filhos. É humilhante”, relatou.
Além de Maria Luzia, outra vítima do caso e uma testemunha foram ouvidas na quarta-feira. O julgamento continua nesta quinta-feira.