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À época da construção de Brasília, Oscar Niemeyer convidou Alfredo Volpi para decorar o interior do primeiro templo católico da nova capital: a Igrejinha Nossa Senhora de Fátima.

A comunidade religiosa não gostou do resultado e, quatro anos depois de concluídos, os afrescos de Volpi foram lixados até o reboco e cobertos com camadas de tinta.

Hoje, Volpi é considerado pela crítica um dos principais artistas da segunda geração do modernismo.

E o episódio de seu apagamento em Brasília constitui um dos capítulos mais nebulosos na história da capital federal.

O caso do Volpi que desapareceu da Igrejinha

Nesta reportagem multimídia, o Metrópoles reconta o passo a passo da tentativa de apagamento do artista na história de Brasília

Nesta
reportagem
multimídia,
o Metrópoles reconta
o passo a passo a tentativa
de apagamento do artista na
história de Brasília

Ranyelle Andrade21/04/2023 – 02:00

Imagem da igrejinha

Imagem da igrejinha

Imagem da igrejinha

Imagem da igrejinha

Imagem da igrejinha

Há seis décadas, um mistério ronda a construção da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima em Brasília. Antes de os famosos azulejos do Athos Bulcão serem instalados na obra arquitetônica de Oscar Niemeyer localizada na EQS 307/308, afrescos pintados por Alfredo Volpi adornavam as paredes internas do santuário.

Porém, a imagem de uma madona segurando o Menino Jesus, ladeada por formas geométricas que também lembram bandeirinhas, não agradou a Cúria Metropolitana de Brasília. Dois anos após a construção de Brasília, diante da insistência da comunidade católica, o mural foi coberto por camadas de cal e tinta azul.

A briga entre artistas e padres caiu no esquecimento dos brasilienses ao longo dos anos. Mas a confusão, que acabou com a destruição de uma das obras de arte mais importantes do país, deixou várias lacunas a serem respondidas por historiadores. Nesta reportagem multimídia, o Metrópoles reconta o passo a passo da tentativa de apagamento do Volpi na história de Brasília e mostra quais os mistérios ainda rondam o painel.

A IGREJINHA

A parte superior da Igrejinha conta com cinco vigas abertas em leque, unidas por um único ponto. De frente, o monumento parece um chapéu de freira ou o véu de uma santa suspenso no ar. O desenho de Niemeyer é coroado, em sua parte mais alta, com uma cruz.

No interior, o espaço é delimitado por uma parede curva nos fundos, e outras duas retas, separadas da primeira apenas por uma estreita abertura.

OS ICÔNICOS AZULEJOS

Instalado em 1959, o mural de azulejos que reveste Igrejinha foi a primeira obra de Athos Bulcão para a capital federal. Em seu trabalho, o artista escolheu representar a pomba do Divino Espírito Santo e a estrela de Belém. Os desenhos se transformaram em um dos maiores símbolos de Brasília e do artista carioca.

PAINEL À ESQUERDA

Na parede esquerda de quem está de frente para o altar, Volpi pintou formas retangulares arrematadas com vértices curvas, que remetem a arcos.

As bandeirinhas foram esboçadas conforme a lógica do ternário, somando 33, número importante para a narrativa católica. Contudo, ao realizar a obra, Volpi abandonou sua ideia inicial e pintou 37 bandeirinhas. O motivo é desconhecido.

Registros sobre a pigmentação são divergentes. Um filme obtido pela pesquisadora Graça Ramos, porém, mostra as bandeirolas em duas tonalidades: branco e vermelho terroso; os arcos aparecem em uma cor fechada, que poderia ser preto ou verde-escuro.

AFRESCO DO ALTAR

No fundo do altar, sobre a mesa da eucaristia, destacava-se a imagem de Nossa Senhora flutuando; a santa segurava uma varinha ou flor e embalava o menino Jesus, que tinha uma bola nas mãos.

Os dois usam uma coroa simples. A santa veste um véu escuro e bata cor de terra. Assim como a criança, ela não tem os contornos dos olhos, da boca e do nariz.

Duas colunas com 12 bandeirinhas cada — pintadas em branco e, possivelmente, verde-escuro — definem os limites espaciais da obra, confeccionada sobre um fundo azul.

A TERCEIRA PAREDE

A terceira parede, à direita de quem olha para o altar, é recheada de mistérios. Existe um esboço com várias bandeirinhas que acompanham o movimento de uma linha curva. Acima, no centro, um anjo paira sobre o desenho; à esquerda, consta a caveira de um boi. Na outra extremidade, há a cabeça de um leão e, ao fundo, uma águia.

Para o crítico Mário Pedrosa, as imagens remetem aos símbolos dos quatro evangelistas: Marcos (leão), João (águia), Lucas (anjo) e Matheus (boi).

Provavelmente, esse afresco nunca foi pintado, pois não há registros fotográficos da obra. Inclusive, vídeos da época da inauguração mostram a parede em branco. Mas há relatos de pessoas que se lembram do terceiro painel aplicado na parede.

“Essas memórias, possivelmente, devem estar ligadas aos esboços que foram amplamente divulgados pela imprensa na época da construção da cidade”, explica Graça. Além disso, de acordo com as notas fiscais da época, Volpi recebeu pagamento pela concepção de dois painéis, não três.

O início

Alfredo Volpi nasceu no ano de 1896 em Lucca, uma pequena comuna italiana na região da Toscana, e, ainda criança, migrou ao Brasil para morar no bairro do Cambuci, em São Paulo.

Antes de dar início à carreira artística, Volpi trabalhou na construção civil e especializou-se na decoração de paredes. Autodidata, começou a pintar artisticamente em 1911, mas o interesse pela cultura popular, que eternizaria seu trabalho, veio mais tarde, a partir dos anos 1940.

Volpi pintando o painel de Dom Bosco no Palácio do Itamaraty. Crédito: German Lorca/Divulgação

Embora não fosse religioso, o artista passou a se interessar por retratos sacros e representações de festejos populares — incluindo bandeirinhas, sua marca registrada —, além de fachadas de arquitetura vernacular e colonial brasileira.

O convite para pintar a Igrejinha veio em 1958, por Oscar Niemeyer, responsável pelo projeto arquitetônico triangular, arrematado com linhas sinuosas e icônicos azulejos de Athos Bulcão. Para além de idealizar monumentos e palácios da capital, era missão do arquiteto agregá-los às artes visuais, de modo a conceber a identidade cultural local.

Movido, sobretudo, pela influência do crítico de arte Mário Pedrosa, defensor da obra de Volpi, Niemeyer pediu ao pintor que lhe apresentasse esboços de afrescos a serem pintados na Igrejinha Nossa Senhora de Fátima.

Cinco rascunhos ganharam destaque na imprensa da época, mas só três teriam sido considerados para o pequeno templo. Desses, apenas dois aparecem em algum registro histórico.

Embora a maioria dos arquivos esteja indisponível e as raras informações coletadas sejam desencontradas, há muitos indícios de que o terceiro mural jamais foi pintado. Niemeyer, por exemplo, só encomendou formalmente dois afrescos, por cerca de 400 mil cruzeiros, o equivalente a R$ 250 mil.

Em fotos do casamento de Hindemburgo Chateaubriand e Maria Regina Célia Uchoa Pinheiro, filha de Israel Pinheiro, em evento que marca o primeiro ato ecumênico realizado no espaço, a parede localizada à direita do altar parece totalmente branca. Na ocasião, no entanto, nem mesmo os azulejos azuis de Bulcão haviam sido instalados.

Piauiense radicada em Brasília e doutora em história da arte, Graça Ramos pesquisou a sequência histórica por vários anos e passou noites em claro buscando respostas para esse e outros tantos enigmas relacionados à destruição do trabalho do artista ítalo-brasileiro. É dela o recém-lançado livro O Apagamento de Volpi: presença em Brasília.

“A cidade sabia da presença do Volpi. Os moradores antigos, que chegaram aqui na década de 1950 e 1960, tinham essa memória, mas isso não era documentado, ninguém havia contado essa história. Estava dispersa e precisava ser divulgada”, pontua Graça, em entrevista ao Metrópoles.

Ex-aluna da Escola Parque da 308 Sul, localizada logo atrás da Igrejinha, a pesquisadora cresceu fazendo visitas frequentes ao espaço. Ao longo da vida, desenvolveu uma relação de intimidade com os mistérios envolvendo as pinturas de Volpi. Para conceber o livro, ela revisitou as próprias memórias, explorou arquivos e conversou com qualquer fonte que pudesse fornecer pistas sobre o caso.

Graça, no entanto, destaca uma característica intrigante envolvendo o destino dos afrescos de Volpi na Igrejinha: uma espécie de “pacto de silêncio” firmado por seus protagonistas e absorvido pela cidade.

A Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, responsável pela administração da Igrejinha desde a fundação, não quis contribuir com o livro de Graça. Orientada pela Cúria Metropolitana, a escritora chegou a enviar uma carta ao Vaticano, mas continuou sem respostas.

Do mesmo modo, o pároco do Santuário Nossa Senhora de Fátima, frei Reinaldo, foi procurado pelo Metrópoles, mas agradeceu o convite para falar e disse que “não se manifesta sobre esse assunto”. A Arquidiocese de Brasília também não respondeu às tentativas de contato da equipe de reportagem.

Desgosto

A escolha de Nossa Senhora de Fátima como padroeira da Igrejinha era fortalecida constantemente pelos relatos de aparição da santa. Havia, também, uma narrativa simbólica entre Fátima e a cidade que nasceria a partir do sonho de JK: para os crentes, ambas simbolizavam a confiança em um futuro melhor, em meio a conflitos político-ideológicos que ameaçavam a paz no Brasil e no mundo.

Em seu livro, Graça destaca que o primeiro templo da capital também contou com forte influência de Sarah Kubitschek. A primeira-dama teria sido aconselhada por Berta Craveiro Lopes, esposa do presidente de Portugal à época, a fazer uma promessa pela recuperação da filha Márcia, que ficou gravemente doente aos 14 anos.

Crédito: Pedro Iff/Metrópoles.

Outra versão, mais política, conta que Juscelino precisava angariar recursos com a igreja para construção da capital e, nesse intuito, comprometeu-se com alguns líderes religiosos dispostos a ajudar.

O desconforto da igreja começou com a expectativa frustrada de que o fundo do altar receberia um crucifixo de bronze assinado por Alfredo Ceschiatti. Sem a cruz, havia o temor de que, com as pinturas de Volpi, a imagem de Fátima na composição arquitetônica se sobressaísse à de Cristo, o que é reprovado pelos religiosos.

Altar da Igrejinha, com a escultura de Nossa Senhora de Fátima, e o painel de Volpi ao fundo. Crédito: Arquivo Público do Distrito Federal/Divulgação

No primeiro ato ecumênico da Igrejinha, que selou a união das famílias Pinheiro e Chateaubriand, o projeto de Niemeyer foi elogiado, enquanto os desenhos de Volpi causavam estranheza e foram tachados de infantis.

Se o clima de desgosto já era sentido na primeira missa, ficou ainda mais evidente em entrevista concedida um mês depois, em agosto de 1958, pelo então arcebispo de Belém, dom Alberto Ramos; esse texto foi resgatado por Graça Ramos. Ao opinar sobre o aspecto do interior da capela recém-construída de Brasília, o clérigo o classificou como “escuro, pequeno e revestido de infelizes pinturas de Alfredo Volpi”.

A Igrejinha foi um dos primeiros prédios de Niemeyer a ficarem prontos em Brasília. Crédito: Agência Nacional/Arquivo Nacional

Apagamento

Em 1962, em data indefinida, os afrescos foram lixados e revestidos com cal; em seguida, preenchidos com camadas de tinta azul comum. A forma como o trabalho foi removido tornou a composição irrecuperável, pelo menos até os dias de hoje.

Em conversa com o arquiteto Luiz Mario Xavier, que foi sócio de Ítalo Campofiorito, amigo de Niemeyer e ex-presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Graça soube que a iniciativa pode até ter partido da comunidade religiosa, mas não ocorreu sem o conhecimento prévio do governo da época.

Segundo Xavier, pressionada pelo clero, Sarah Kubitschek pediu a Juscelino que os desenhos de Volpi fossem apagados. Na época, JK não era mais presidente; ele havia sido eleito senador por Goiás, mas ainda exercia grande influência no Distrito Federal.

O político, então, comunicou a decisão a Niemeyer, que consentiu. Ao ser avisado, o autor da obra teria ficado mordido, mas recebeu como compensação a promessa de ser homenageado com um espaço no Itamaraty.

1957

Início da construção de Brasília

1958

Niemeyer convida Volpi para pintar os afrescos da Igrejinha, que começa a ser erguida em março

A imprensa publica imagens dos esboços idealizados para o espaço interno do templo, e Volpi inicia a pintura

Em 28 de junho, a Igrejinha é inaugurada, com o casamento de Hindemburgo Chateaubriand e Maria Regina Célia Uchoa Pinheiro, filha de Israel Pinheiro

“Infelizes pinturas de Volpi”: dom Alberto Ramos, arcebispo de Belém, concede entrevista fazendo críticas incisivas aos afrescos

1959

As paredes externas da Igrejinha recebem os azulejos de Athos Bulcão

1962

Pinturas de Volpi são lixadas e cobertas por camadas de cal e tinta azul

1966

Volpi executa o painel O Sonho de Dom Bosco, em espaço prometido por Niemeyer, no Palácio do Itamaraty

2009

Iphan convida o artista piauiense Francisco Galeno, radicado em Brazlândia, para conceber novo projeto artístico que viria a adornar o interior da Igrejinha

2017

Instituto Volpi ameaça processar os responsáveis pelo apagamento de Volpi em Brasília

Restauração
com Galeno

Quase cinco décadas depois, em 2009, o Iphan começou a restauração da Igreja e convidou o artista piauiense Francisco Galeno, criado em Brazlândia, para pintar o interior do templo.

Na nova pintura, a santa tem uma pipa no lugar das mãos, o carretel do brinquedo vira um rosário, e há flores na coroa. Esses símbolos representam a alegria das crianças que teriam avistado Fátima pela primeira vez. Nas laterais, predomina a cor azul bem forte.

Mapa 3

Mapa 3

Créditos: Marcel Gautherot/Revista Brasília. Pedro Iff/Metrópoles

“Os trabalhos de Volpi e de Galeno não são semelhantes, mas há uma proximidade de linguagem”, avalia Graça. A historiadora da arte lembra que também houve críticas às pinturas de seu conterrâneo. “Acho que ainda hoje a comunidade tem alguma resistência”, pondera.

“As pessoas querem uma representação fiel, leal ao dogma: as três crianças, o anjo, a Nossa Senhora. Na verdade, o artista pode representar isso de maneiras muito variadas, muito diferentes.”

Em 1966, com intervalo de oito anos da intervenção na Igrejinha da 308 Sul, Volpi executou o painel no Palácio do Itamaraty, com a figura de Dom Bosco. Niemeyer havia prometido que o mural ficaria em uma sala especialmente destinada à obra, o que não aconteceu.

Localizada em um corredor sem saída, a pintura pode ser vista da rua e, à noite, aparece refletida na lâmina d’água dos jardins do Itamaraty. Em 2013, o Instituto Volpi avaliou a obra em mais de R$ 1 milhão.

Ameaça de processo

Em 2017, o presidente do Instituto Volpi, Pedro Mastrobuono, afirmou ter coletado dados suficientes sobre as obras da Igrejinha para ingressar com ação judicial contra a Arquidiocese de Brasília. “Mesmo sabendo que os padres poderiam ter participado do ato, a Igreja não investigou nem pediu apuração policial”, disse ao portal, na época.

Procurado, em 2023, para informar se o processo prosperou, o Instituto não respondeu às tentativas de contato da equipe.

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