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Governo irá julgar reparação a indígenas perseguidos pela ditadura

Comissão de Anistia terá advogada pankararu especialista em violações do regime militar contra esses povos

atualizado 26/02/2023 22:50

Indígenas fazem corrente com mãos em frente ao Congresso Nacional, na Esplanada dos Ministérios, protestando contra resultado das eleições presidenciais - Metrópoles Breno Esaki/Especial Metrópoles

A Comissão da Anistia no terceiro mandato do governo de Lula nomeou, pela primeira vez desde a redemocratização do país, uma conselheira indígena para auxiliar a discussão, avaliação e julgamento dos casos de perseguição pela ditadura militar aos povos indígenas. Até agora, era um tema invisibilizado nos julgamentos de vítimas do regime militar e das violações cometidas.

O colegiado ganhou uma composição diversa e ampla. Foram muitas as inovações. Entre esses ineditismos estão a presença, pela primeira vez,  de uma mulher na presidência da comissão, a advogada Eneá Stutz; é inédito também um civil como representante do Ministério da Defesa, o advogado da União Rafaelo Abritta; e a presença da advogada  Maíra de Oliveira Carneiro, primeira indígena, da etnia pankararu, a integrar o colegiado.

Eneá Stutz explicou ao Blog do Noblat que sempre houve uma dificuldade na comissão desde sua criação, em 2002, em discutir a perseguição aos indígenas.

“Sempre tivemos uma certa dificuldade com essa temática porque nunca tivemos indígenas na comissão. Sempre a perspectiva dos brancos. E, veja, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) chegou ao número de 8 mil indígenas assassinados e a referência que temos é de que, até hoje, são 434 os mortos e desaparecidos pela ditadura. É um absurdo nuca termos conseguido dar voz a esses povos, o que esperamos alcançar agora, com uma conselheira indígena na comissão” – disse Eneá Stutz, que ainda enxerga muitas dúvidas sobre como atuar nesses casos.

“Quando a gente pensa em reparação a eles, como fazer? Tem que ser integral, mas como? Como seria adequado a fazer essa reparação para um grupo de indígenas, como manda a Constituição. Então, nada melhor que ouvi-los” – disse a presidente.

Mestranda e estudiosa sobre a relação dos indígenas com o regime militar, Maíra Carneiro tem se dedicado à justiça de transição, memória e verdade. Ela conta que o tratamento a ser dado na Comissão de Anistia aos indígenas não pode repetir padrão utilizado até agora, que julgou casos isolados e pessoais de estudantes, militantes de grupos de esquerda e servidores públicos.

Hoje, dificilmente se encontraria um indígena atingida individualmente por uma ação da ditadura, que tenha sido preso e torturado – e isso ocorreu também entre eles – mas o foco deve ser outro, entende a primeira indígena a integrar a comissão.

“Os crimes contra os indígenas foram cruéis, brutais. Se promoveram verdadeiros genocídios. Mas somente em 2014, na Comissão da Verdade, esse assunto foi lembrado. No primeiro momento, é tomar pé de tudo que houve, e há muita informação sobre. Como andam os processos. Eu nasci em 1988, no ano da Constituição. Digo que estou no meio do caminho, um pé na aldeia e outro na academia” – afirmou Maíra Carneiro.

A advogada pankararu diz que mesmo que não se localize e identifique um único indivíduo que possa contar sobre as violações de direitos humanos cometidas contra os indígenas, a própria ditadura produziu muito documento, que comprova a perseguição, o genocídio e a tortura contra esses povos.

“Mesmo que todas testemunhas não estejam disponíveis ou morreram, mas são casos tão graves que as provas estão produzidas. O que precisamos é trazer tudo isso à tona. Já há material suficiente para condenar o estado brasileiro” – disse Maíra.

Um caso lembrado pela especialista é a do Reformatório Agrícola Indígena Krenak, instituído pela ditadura na cidade de Resplendor, em Minas Gerais. Ali, foi criada ainda uma Guarda Rural Indígena, que ficou conhecida como “Grin”, em 1969. Indígenas de algumas etnias foram submetidos a tortura.

Advogada Maíra Carneiro

 

Em 2021, a juíza Anna Cristina Rocha, da 14ª Vara Federal de Minas Gerais, condenou a União, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o governo de Minas Gerais por “violações aos direitos humanos e crimes cometidos contra os Krenak, respaldados em políticas públicas e instituições estatais criadas especificamente para essa finalidade, durante o período da ditadura militar no Brasil”.

Maíra Carneiro (na foto acima) enxerga esse caso como uma referência e ponto de partida para discussão das reparações aos povos indígenas vitimados pela ditadura.

“Quando há uma condenação dessas, que obriga o estado brasileiro e o governo de Minas a pedirem desculpas por suas atitudes e que as terras dos krenak sejam demarcadas temos formas de reparação diferentes. A gente não quer dinheiro. O valor de R$ 100 mil (pago pela Comissão de Anistia em prestação única) por torturado é outra história, é para os urbanos. Os indígenas foram perseguidos, mal sabem por quem, as razões, tiveram suas terras invadidas e nelas passaram rodovias e hidrelétricas” – relata.

“Vamos trabalhar por formas coletivas de reparação, não individualizadas. Esse caso de Minas Gerais pode voltar à Comissão de Anistia, já que foi negado em 2017. Importante é que é mais uma trincheira que se abre. Nós lutamos no STF pelas nossas causas, contra uma bancada ruralista no Congresso Nacional, dificuldades grandes para demarcações de nossas terras. E, agora, precisamos contar que na ditadura aconteceu isso e isso e que a demarcação deve vir como reparação”.

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