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Uma nova chance para europeus e latino-americanos (por Marcos Magalhães)

A guerra real e concreta do leste da Europa coloca em lados opostos as duas superpotências da Guerra Fria

atualizado 18/07/2023 1:36

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A paz invadiu o coração de João Donato na segunda-feira. E a canção mais bonita que ele nos deixou, acompanhada da letra de Gilberto Gil, cresce após a sua morte como contraponto a um tempo marcado pelo conflito.

Antes de deitar-se na rede para tirar uma soneca, relatou Gil ao comentar a obra do parceiro, Donato entregou a ele a gravação da música, composta para um antigo amor. E pediu-lhe que a colorisse de palavras.

Pois Gil recorreu, ao ilustrar o sentimento que deu origem à canção, à “grande explosão” que marcou o início do fim da Segunda Guerra Mundial. “Uma bomba sobre o Japão”, escreveu, “fez nascer o Japão da paz”.

Oito décadas depois da bomba, o mundo parece flertar mais uma vez com os grandes conflitos. E o epicentro dessa nova onda está ali mesmo, na velha Europa, onde a maior das guerras começou a partir dos movimentos dos tanques alemães em países vizinhos.

Seis anos e milhões de mortes se foram antes que um avião americano despejasse sobre Hiroshima a primeira bomba atômica. Essa mesma que fez nascer o Japão da paz.

A História está aí para quem a quiser estudar. E o mundo, talvez mais do que em qualquer outro momento, precisa muito de paz. Para se dedicar a causas comuns e urgentes, como o combate à pobreza, às pandemias e à mudança climática.

No entanto, além de conflitos regionais perdidos no mapa, o planeta é palco no momento de duas brigas de cachorros grandes. O primeiro teve início com a invasão da Ucrânia por tropas russas. O segundo, mais silencioso, está ligado ao controle da economia e da tecnologia.

A guerra real e concreta do leste da Europa coloca em lados opostos as duas superpotências da Guerra Fria – Estados Unidos e Rússia, então ainda a principal nação da União Soviética. A guerra mais silenciosa envolve os mesmos Estados Unidos e a nova grande potência – a China.

Até o momento, em nenhum dos dois conflitos parece prevalecer a busca por algum tipo de solução. E o resto do mundo pode apenas esperar que nenhuma “grande explosão” precise acontecer antes que se chegue a um tempo marcado pela paz.

A mesma velha Europa onde nasceu a Segunda Guerra agora se vê espremida entre polos opostos nos dois tipos de conflito. Na guerra dos campos de batalha aliou-se aos Estados Unidos para armar e financiar a Ucrânia. Na guerra da economia tenta achar um novo espaço.

Os dois temas estiveram no cenário da primeira reunião de cúpula em oito anos da União Europeia (EU) e da Comunidade de Estados da América Latina e do Caribe (Celac), iniciada em Bruxelas na mesma segunda-feira.

Desde os preparativos da reunião, os europeus quiseram atrair os latino-americanos para uma posição de mais nítido apoio à Ucrânia contra a Rússia. Por outro lado, acenam com um novo modelo de parceria econômica para uma realidade igualmente nova.

A guerra na Ucrânia deve permanecer longe do radar de nossas prioridades. É justo condenar a invasão do país por aquilo que é – uma agressão ao direito internacional. Mas não se pode esperar da América Latina que forneça à Ucrânia mais do que essa solidariedade.

Para o Brasil seria ainda perda de tempo e de energia buscar colocar-se, como já quis o presidente Luís Inácio Lula da Silva, como parte de um grupo de países dispostos a buscar uma solução de paz. Até por ser visto por muitos países ocidentais como simpático a Moscou.

Ao Brasil e ao subcontinente parece muito mais útil o diálogo com os europeus sobre o futuro de sua cooperação econômica – o mais importante tema da cúpula de Bruxelas.

E aqui cabem mais capítulos do que o tão aguardado – e tão adiado – acordo de associação entre a União Europeia e o Mercosul. Até porque a cúpula abriga toda a América Latina.

Estados Unidos e China estão envolvidos em uma competição quase bélica pelo controle de tecnologias, matérias primas e mercados que moldarão a economia do século 21. A Europa busca calibrar os incentivos e as relações internacionais necessárias para se manter relevante.

Com exceção do México, com o qual mantém relações cada vez mais intensas, os Estados Unidos andam ausentes da maior parte da América Latina. A China, sim, está cada vez mais próxima do Brasil e dos países vizinhos.

Tanto que parece ter feito cair a ficha no Velho Continente. “Os europeus não prestaram atenção suficiente à América Latina”, disse ao Financial Times o responsável por assuntos externos da EU, Josep Borell. “Nós temos que levar em consideração o novo cenário geopolítico com a ascensão da China”.

Além de ampliar o comércio com os latino-americanos, para reduzir a liderança assumida pelos chineses, os europeus estão interessados em matérias primas essenciais para a descarbonização da economia, como o lítio, e em novas fontes de energia, como o hidrogênio verde.

Como eles vão alcançar esse objetivo? Aqui começa todo um novo capítulo de engenharia política, que vai muito além da assinatura de um acordo de livre comércio. Envolve investimentos para beneficiamento local das matérias primas e, sobretudo, confiança.

Ainda são bem presentes, na América Latina, as lembranças dos tempos coloniais. Dos tempos em que as riquezas minerais escorriam para o outro lado do Atlântico por suas veias abertas.

O tempo presente talvez ofereça a melhor oportunidade para se adotar um novo modelo, que ajude a Europa a se manter relevante e a América latina a se desenvolver.

Um bom ponto de partida pode ser o investimento na região de 45 bilhões de euros, anunciado durante a cúpula pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

Entre os setores beneficiados, mencionou, estão os de energia eólica – e a sua transformação em hidrogênio verde a ser exportado para a Europa – e as chamadas matérias primas “críticas”, essenciais à economia de baixo carbono.

Nas palavras da presidente pode estar o roteiro para um novo modelo de relacionamento. “Ao contrário de investidores estrangeiros comuns”, disse Ursula, não estamos apenas interessados na extração dessas matérias primas, mas sim em construir uma parceria”.

Em tempos de múltiplos conflitos, as palavras soam bem. Caberá à nova geração de líderes europeus e latino-americanos usá-las para escrever novo – e mais justo – capítulo da História.

 

Tributo a João Donato
(playlist do Blog do Noblat)

 

Marcos Magalhães. Jornalista especializado em temas globais, com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra), apresentou na TV Senado o programa Cidadania Mundo. Iniciou a carreira em 1982, como repórter da revista Veja para a região amazônica. Em Brasília, a partir de 1985, trabalhou nas sucursais de Jornal do Brasil, IstoÉ, Gazeta Mercantil, Manchete e Estado de S. Paulo, antes de ingressar na Comunicação Social do Senado, onde permaneceu até o fim de 2018.

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