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Dupla platina pode mudar o Mercosul (por Marcos Magalhães)

Os dois principais sócios do Mercosul vão experimentar novo período de distanciamento

atualizado 21/11/2023 12:48

Imagem colorida das bandeiras do Brasil (esquerda) e Mercosul (direita) - Metrópoles Wikimedia Commons

Eram quatro e meia da manhã de segunda-feira quando tocou o telefone do presidente eleito da Argentina, Javier Milei. A ligação vinha do outro lado do mundo, mas a voz tinha o mesmo sotaque platino. Era o presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, que lhe felicitava pela vitória.

“Foi muito divertido”, disse Milei em entrevista a uma emissora de rádio de Buenos Aires, depois de uma noite de celebração. O colega uruguaio, relatou, estava na Grande Muralha da China.

Segundo o presidente eleito, os dois tiveram uma conversa “verdadeiramente formidável”. Lacalle o convidou para ir a Montevidéu conversar sobre as relações bilaterais e sobre as questões que precisarão resolver em conjunto.

“Como temos muita afinidade, vamos resolver tudo diante de um assado”, previu Milei.

Nada que tenha muita pressa. O presidente eleito da Argentina primeiro vai aos Estados Unidos e, em seguida, a Israel, para encontrar-se com amigos rabinos. “Vai ser uma viagem mais espiritual”, definiu.

Não, Milei não fará do Brasil seu primeiro destino após vencer as eleições, como tem acontecido com presidentes anteriores. E nem o presidente Luís Inácio Lula da Silva estará em Buenos Aires para a sua posse, no dia 10 de dezembro.

Os dois principais sócios do Mercosul vão experimentar novo período de distanciamento, como ocorreu quando Jair Bolsonaro e Alberto Fernández estiveram, ao mesmo tempo, no Palácio do Planalto e na Casa Rosada.

E isso pode vir a ocorrer quando o bloco liderado por Brasil e Argentina está na reta final – ainda que um pouco longa – para a conclusão de um há muito tempo aguardado acordo de associação com a União Europeia.

Questionado sobre as consequências da vitória de Milei, o porta-voz da Comissão Europeia, Olof Gill, assegurou que as negociações permanecem em andamento.

“Continuamos a trabalhar para cumprir o prazo estabelecido pela presidente da Comissão, Ursula Von der Leyen, para resolver isso antes do final do ano”, assegurou Gill.

Será? Se assim for, o ultraliberal Milei manterá o acordo? Essas são, talvez, apenas algumas das primeiras perguntas que estarão em aberto na transição para o novo governo argentino.

Essas perguntas não são triviais para o Brasil, que tem na integração continental uma de suas maiores prioridades de política externa. Por mais criticado e incompleto que seja, o Mercosul ainda tem muita importância política e econômica para o país.

Uma coisa já é certa. Vai demorar até que Argentina e Brasil acertem o passo novamente. Enquanto isso, Lacalle e Milei já estarão buscando convergências em torno de um churrasco. Em comum eles já têm o discurso de defesa de mercados abertos.

Por coincidência, Lacalle Pou deu início à sua visita de Estado à China justamente quando seu futuro colega argentino vencia o segundo turno das eleições.

A agenda do presidente uruguaio em Pequim contém pelo menos um item que desagrada ao Brasil: a negociação de um acordo de livre comércio com a China.

O estudo de viabilidade do acordo foi concluído em 2022, quando 30% das exportações do Uruguai foram enviadas à China, agora seu principal parceiro comercial. O comércio bilateral chegou a US$ 7,4 bilhões no ano passado, em aumento de 14% em relação ao ano anterior.

Ocorre que, pelas atuais regras do Mercosul, qualquer acordo com algum parceiro externo precisa ser feito em conjunto pelo bloco – ou seja, assinado por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. A Venezuela, embora integrante, está afastada do Mercosul.

Para os uruguaios, essa é uma roupa muito apertada. Até agora, Buenos Aires e Brasília pressionaram Montevidéu para que suspenda o projeto de um acordo de livre comércio com a China e busque, com os demais sócios, a conclusão do entendimento com a União Europeia.

Após a posse de Milei, Lacalle Pou pode conseguir um aliado em favor da flexibilização das normas do Mercosul, deixando o Brasil isolado. Na verdade, Milei pode vir a questionar a própria permanência de seu país no bloco regional. O que levaria, provavelmente, ao fim do Mercosul.

O comércio com os demais países do bloco tem uma característica especial para o Brasil. O Mercosul recebe atualmente cerca de 20% das vendas externas da indústria brasileira – especialmente de automóveis.

Segundo estudo da Confederação Nacional da Indústria, cada R$ 1 bilhão exportado pelo Brasil aos demais países do Mercosul gera 24,4 mil empregos e R$ 550 milhões em salários. Nas exportações para a China, onde produtos primários são mais importantes, os números são de 15,7 mil empregos e R$ 315 milhões em salários.

Isso passa pelo fato de que as tarifas cobradas sobre países de fora do bloco são muito altas. Ou seja, as indústrias localizadas nos próprios países do Mercosul têm grande vantagem competitiva em relação às que estão espalhadas pelo resto do mundo.

Os industriais da Argentina e do Brasil sempre se empenharam em manter as coisas assim. Com Milei será diferente? Ainda é difícil prever. Como é difícil antecipar se Lacalle Pou conseguirá apoio para firmar seu negócio da China.

Os dois já estão perto de um primeiro encontro, às margens do Rio da Prata. Enquanto acompanha tudo a distância, o governo brasileiro se dedica a analisar possíveis desdobramentos de um cenário pouco otimista.

 

Marcos Magalhães. Jornalista especializado em temas globais, com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra), apresentou na TV Senado o programa Cidadania Mundo. Iniciou a carreira em 1982, como repórter da revista Veja para a região amazônica. Em Brasília, a partir de 1985, trabalhou nas sucursais de Jornal do Brasil, IstoÉ, Gazeta Mercantil, Manchete e Estado de S. Paulo, antes de ingressar na Comunicação Social do Senado, onde permaneceu até o fim de 2018.

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